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frankly my dear, I don't give a damn

Tenho duas reviews em atraso e dá-me para isto.


Estou actualmente a ler um conhecido clássico, Gone with the Wind, que além de telenovelesco, calhamaço e imortalizado pelo filme com a Vivien Leigh, é um exemplo do popular género literário "Ficção Histórica". Este género é, como o título indica, ficção - porém, é ficção que se enquadra num período histórico, na qual este período é central - além do ambiente, também as morais e valores das personagens devem reflectir as desse período. Note-se, por exemplo, que Scarlett, a protagonista desta obra, é uma rapariga mimada com muitos conflitos sobre o que, enquanto boa rapariga e senhora de respeito, pode ou não fazer, e é bastante racista, o que seria de esperar de alguém a crescer na Georgia rural antes da guerra civil norte-americana.

A propósito de retratar personagens de forma racista, deixo aqui um artigo sobre a tentativa há uns anos de reescrever o Huckleberry Finn sem a "n word" para que pudesse ser ensinado nas escolas e não banido, apagando totalmente o facto de, linguagem e tudo, a obra ser um retrato de uma época.

Mas voltando ao tema: em conversa com o meu amor, vítima das minhas frequentes divagações sobre aquilo que ando a ler e fã incondicional deste blog, apercebi-me de algumas coisas sobre este género.

Uma delas é que muitos dos livros são bastante grandes: além do Gone with the Wind, pense-se também no War and Peace, que é mais conhecido por ser enorme que por ser a história de quatro famílias russas durante as invasões napoleónicas, e no Les Misérables, talvez mais conhecido enquanto musical irritante. Pelo menos nestes três casos, a dimensão da narrativa é justificada pela inserção de vários factos históricos (como descrições de batalhas reais).

Depois há aquela que julgo ser a principal categorização entre obras do género:
a) Alguns livros considerados como ficção histórica passam-se em períodos históricos, com alguns cenários de guerras reais, personagens reais (como o Clausewitz no War and Peace), mas são histórias sobre personagens fictícias, como os três livros que mencionei acima;
b) Outros livros vão mais longe e ficcionam a vida de pessoas reais (como o Rapariga com brinco de pérola ou aqueles livros da Philippa Gregory sobre os Tudors).

Enquanto acho os livros da categoria a) na sua maioria* perfeitamente aceitáveis, os da categoria b) irritam-me por dois motivos: a especulação sobre vidas de terceiros (sendo esses terceiros sempre gente que de alguma maneira foi influente na história - tal como na vida passada fomos todos Cleópatra e ninguém foi escravo, também ninguém escolhe o escravo como personagem principal) e o facto de muita gente achar que são fiéis à realidade e acredite na falsa história que estes livros proclamam e propagam. Enquanto que será óbvio que ninguém sabe ao certo como se desenrolaram certos diálogos, e a palavra ficção assume desde logo a existência de liberdade criativa, em partes há sem dúvida demasiada liberdade criativa. Vejam-se críticas à autenticidade histórica do The Other Boleyn Girl, aparentemente o livro mais polémico de Philippa Gregory.

O único livro do género b) que li até à data foi o Rapariga com brinco de pérola, de Tracey Chevalier, que achei aborrecido e algo ofensivo pela assunção de factos sobre a vida de alguém, mesmo que esse livro se assuma mais claramente como obra de ficção. Percebo que esse tipo de obras possa ter um elevado valor no sentido do entretenimento, ou mesmo de levar quem os lê a um amor pela história; e sei que várias das peças de Shakespeare se enquadram nessa categoria.

Não gosto particularmente da ideia de ler sobre a vida inventada de alguém - se vamos inventar uma vida, por que não inventar a personagem de raiz? Deixo aqui uma citação retirada do The Guardian, que resume os meus sentimentos:

I have no problem with the idea of an author reinventing Abraham Lincoln as a vampire hunter, for example, as long as the fantasy is grounded in a knowledge of his biography and the book is well-written. At least it's obvious to readers that it's made up. Far more irritating to me are films such as Becoming Jane, which seemed so taken with the idea of turning Jane Austen into one of her own romantic heroines that it brushed aside even the most basic understanding of Austen's life and circumstances.

* Vou referir aqui The Boy in the Striped Pajamas, de John Boyne, que assenta na premissa totalmente inverosímil de um rapaz alemão de nove anos, filho de um general importante, não saber nada do que se passava na Alemanha e nos campos de concentração e desconhecer a palavra "Auschwitz". O livro assume-se como uma "fábula" e não como factos reais, mas não acho que esse factor atenue o quão fraco o livro é, até por poder induzir um leitor a pensar que certos eventos em campos de concentração não passaram de ficção.

Comentários

  1. Olá Bárbara! Não havia pensado antes nessa divisão da ficção histórica, mas achei muito interessante! Também prefiro muito mais que, se forem "adicionar vários pontos ao conto", criem antes uma personagem fictícia do zero, mesmo que possa ser inspirada em alguma figura histórica, caso contrário nem sequer é justo para a pessoa em questão, que já não se pode defender sobre o que é inventado sobre ela.

    Em relação aos esses três calhamaços que mencionaste, tenho uma vontade ENORME de os ler!

    Beijinhos! :)
    -Carolina

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    Respostas
    1. é verdade Carolina, eu também não tinha pensado na questão até estar a falar do livro ao meu namorado e ele me perguntar se "ficção histórica" significava que a personagem era real... agora que penso um bocadinho mais no assunto, pegar em alguém que já existiu parece preguiçoso :/

      já li o guerra e paz e é interessante embora não tenha achado particularmente especial, o les misérables li uma versão abridged porque me quero arriscar na completa em francês um dia :) o gone with the wind publiquei agora a review e adorei completamente, recomendo imenso!

      Beijinhos :)

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    2. Verdade...
      Bom saber, vou então dar prioridade aos les misérables e ao gone with the wind. Quanto aos miseráveis boa sorte :D , eu ainda tenho de desenferrujar muito o meu francês para um dia me aventurar a ler na versão original ou ficaria perdida, mas acho que é um ótimo desafio! :)

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    3. haha obrigado :) eu estou na missão de desenferrujar o francês e acho que ler (especialmente obras que se conheçam bem, já se tenham lido, por exemplo) é uma óptima maneira de o fazer! atenção que o guerra e paz é bom na mesma, e vale a pena, apenas não o meteria muito alto na lista de prioridades :)

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