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O Deus das pequenas coisas

Demorei demasiado tempo a pegar neste livro.


É 1969 e apesar da não tão recente independência da Índia, o sistema de castas prevalece. "Ammu" Kochamma, filha de um entomólogo respeitável (conhecido como "Pappachi") e de uma violinista ("Mammachi"), queria fugir ao casamento arranjado e às tradições, e casa-se numa visita a familiares em Bengali, um pouco contra a vontade da família. Acaba por se divorciar do marido, por este ser alcoólico e violento, mas não sem antes ter dois filhos gémeos: Esthappen, um rapaz, e Rahel, uma rapariga. Volta então para a sua casa de família em Ayemenem, condenada a viver como uma pária da sociedade devido ao seu divórcio.

Interessante será notar, desde já, que o chefe da família era Chacko, seu irmão, membro do Partido Comunista, e também divorciado, de uma mulher inglesa - divórcio não tão mal visto porque, lá está, era um homem. A restante família era Mammachi, já cega (Pappachi tinha morrido, após anos enquanto marido e pai violento) e Baby Kochamma, tia-avó de Estha e Rahel. Ammu cria Estha e Rahel de modo a serem crianças inteligentes e avançadas para a sua idade, mas toda a família ressente a sua presença: especialmente Baby Kochamma que, tendo falhado a conquistar o amor da sua vida, tenta fazer toda a gente miserável. Estha que deixa de falar e Rahel que se torna um pouco como Ammu, rebelde, selvagem.

A história vai alternando, sem grande fio cronológico, entre 1969, quando os gémeos têm sete anos, e 1993, quando já têm 31 - a idade com que Ammu morreu, como sabemos logo no início. O início deste livro é, na verdade, bastante lento - mas apanha o ritmo e recompensa, imenso. O livro tem uma estrutura única, e uma linguagem também única - e avança no tempo e no espaço com uma leveza incrível, com uma sensação que algo vai acontecer. E tudo isto cria um livro de uma beleza enorme, porque o que Arundhati Roy faz não é pegar numa tragédia e escrever um livro, é escrever toda uma história de perda, perda de inocência, perda de união familiar, amores proibidos, as leis de quem pode amar e como, e como tudo pode mudar num dia.

E é precisamente nessa última ideia que entra o "Deus das pequenas coisas", porque as pequenas coisas podem desencadear todo um conjunto de eventos e, neste caso, desgraças. Sophie Mol, a filha meio-inglesa de Chacko, vem à Índia passar o Natal, juntamente com a sua mãe, Margaret, após a morte do segundo marido desta. E é este evento que despoleta tudo o resto. Portanto, quanto mais horríveis possam ser as "coisas grandes", muitas vezes são as "pequenas coisas" que complicam tudo o resto - ou, às vezes, as "coisas grandes" entram nas "pequenas coisas" e contaminam-nas. Gémeos separados, uma mulher a quem negam o amor devido às castas tocáveis e intocáveis, e todo um conjunto de personagens que sonha com o que "podia ter sido".

Uma família de Cristãos Sírios anglófilos e afluentes: Mammachi, que queria ser violinista (sonho não permitido pelo seu marido), funda o negócio dos Pickles Paraíso e Pappachi entomólogo imperial frustrado bate-lhe diariamente na infelizmente tradicional violência contra mulheres que ainda hoje se verifica na Índia. Baby Kochamma tornou-se freira para seduzir um padre e apenas acabou mais infeliz do que tinha começado. Chacko é a menina dos olhos de Mammachi, é anglófilo no coração e um Marxista confuso. Ammu é a mãe divorciada de dois gémeos. E há Velutha, o carpinteiro da casta Intocável, comunista porém indispensável na manutenção das máquinas da fábrica. E chega a pálida e britânica e adorável Sophie, a filha de Chacko e de Margaret, que entra na pequena vida dos gémeos Estha e Rahel, um mundo onde nem todas as crianças acabam por ser iguais, porque há preconceito em todo o lado: no facto de Ammu se ter divorciado, no facto de Sophie ser meio britânica.

Entra o "Música no Coração", entra o Homem Laranjada-Limonada com o evento que despoletará o Grande Evento que mudará as vidas da família Kochamma para sempre: a morte de Sophie Mol (anunciada logo na terceira página do livro). E é em torno desta morte, e de tudo o que levou até ao funeral de Sophie, que a narrativa do livro se constrói. Até que, em 1993, Estha e Rahel, ambos de regresso à casa da família, onde já só vivem Baby Kochamma e a empregada Kochu Maria, se voltam a ver, aos 31 anos, uma idade viável morrível.

E, a par das leis do amor que decidem quem se pode amar, e como, que determinam tudo, há as leis do abuso, do horror, da violência, entre política, religião, cultura, família. "Leis" que são tão determinantes na Índia como no resto do mundo. O livro está preenchido de uma certa melancolia - talvez mesmo tristeza - e de história, porque o background histórico é fundamental. Não sabia (e não sei) muito sobre a Índia, mas é importante aqui a ideia de construção social do Homem, e o modo como isto nos tira o controlo das nossas vidas: neste caso, a construção social herdada do colonialismo e das questões sociais indianas, e a forma como a História acaba por nos moldar e influenciar. Confusão, hipocrisia, relações de poder, as diferenças de liberdade (sexual, principalmente) entre homens e mulheres.


(a) Tudo pode acontecer a Todos.

E
(b) É melhor estar preparado.


E é com essas pequenas premissas que este livro, cheio de desentendimentos, mal-entendidos e dor, mostra como a tragédia leva ao medo, o medo leva à tragédia. E como os gémeos descobrem, 24 anos mais tarde, que não foram eles os culpados, foi sim contra eles que agiram mal. Porque amaram a pessoa errada, da maneira errada.

5/5

Podem comprar uma outra edição em inglês aqui, ou em português aqui.

Maratona Literária de Verão 2017: 520 pág.

Comentários

  1. Ainda hoje falámos da Índia :p parece interessante o livro, as pequenas coisas do dia a dia são aquelas que moldam a nossa vida, kudos por mais um belo post

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    1. É verdade :p é muito bonito o livro, e muito trágico mesmo, algo que talvez não tenha transparecido neste post porque não queria spoilar muito! Muitos dos acontecimentos do livro não são tão pequenos assim, mas outros são, e acabam por influenciar tanto! Muito obrigada :$

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  2. Tenho a mesma edição que fotografaste e ando a pensar em pegar-lhe. A autora publicou recentemente um outro livro, mas pelo que li não é nem de perto tão bom como este, ainda que tenha recebido algumas boas críticas. A ver a ver...

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    1. A edição parece-me boa! Não reparei em erros, a tradução também não me incomodou (sou aquela pessoa que lê algo traduzido e começa a imaginar como estaria no original - sou horrível). Soube desse livro novo, não sei se terei curiosidade. Vou-lhe dar tempo! :) já deste gostei muito, muito mesmo! Pega nele!

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  3. Tenho este livro para ler. Espero que seja este ano... :)
    Beijinhos

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    1. Isaura, tenta que seja o mais cedo possível, acho mesmo que vais gostar muito! :)

      Beijinhos!

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  4. Tenho o livro mas ainda não lhe peguei. Talvez num futuro próximo (o teu post deixou-me com vontades)! :)

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    1. Pega nele, Marta! Achei a história lindíssima, estou também curiosa com o novo livro da autora :) li uma entrevista dela no Expresso há dias e é uma pessoa super interessante!

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