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El Túnel

Peguei neste livro porque o Le Rouge et le Noir me exasperava e precisava de uma pausa.


E se um livro numa língua na qual não somos fluentes nos exaspera - que melhor solução senão pegar num outro livro, também ele escrito numa outra língua na qual não somos fluentes?

Já li um Pablo Neruda, já li um Vila-Matas, e esta foi a vez de El Túnel, comprado em Madrid em Janeiro. El Túnel é a história do como e do porquê de Juan Pablo Castel ter matado María Iribarne, a sua amante. Isto não é spoiler: é a primeira linha do livro.

Bastará decir que soy Juan Pablo Castel, el pintor que mató a María Iribarne; supongo que el proceso está en el recuerdo de todos y que no se necesitan mayores explicaciones sobre mi persona.

Conseguem pensar num início que prenda mais que este? Lembra-me imediatamente de Camus e do seu "Aujourd'hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas." - e todo o livro me acabou por lembrar um pouco de L'Étranger, à sua maneira, com o narrador-protagonista-assassino que confessa o seu crime. Passamos a narrativa para Buenos Aires, anos 40, e temos Juan Pablo Castel, que é, lá está, um pintor. E como ele nos explica poucas frases depois, matou a única pessoa que algum dia o compreendera. E qual o maior desejo do artista, senão, ao ter encontrado a cor correcta (ou a frase, ou a palavra correctas, na literatura) ser compreendido (como Kafka ou Van Gogh nunca foram)?

E é o desejo de ser compreendido que faz com que Castel continue a pintar. É neste sentido que nos é explicado o título do livro: o túnel era onde vivia sozinho, sem que alguém o compreendesse. Até que Juan Pablo encontra uma mulher que, numa exposição dos seus quadros, se fixa numa cena. Esta cena retrata a solidão, uma mulher, a praia, uma janela; esta mulher parece compreender a cena, sentir essa mesma solidão, e Castel percebe que talvez tenha uma mensagem maior a passar. E que talvez não esteja sozinho, afinal.

Y era como si los dos hubiéramos estado viendo en pasadizos o túneles paralelos, sin saber que íbamos el uno al lado del otro, como almas semejantes en tiempos semejantes, para encontrarnos al fin de esos pasadizos, delante de una escena pintada por mí, como clave destinada a ella sola, como un secreto anuncio de que ya estaba yo allí y que los pasadizos se habían por fin unido y que la hora de encuentro había llegado.
(...)
 y hasta pensaba que en esos momentos su rostro cambiaba y que una mueca de burla lo deformaba y que quizá había risas cruzadas con otro y que toda la historia de los pasadizos era una ridícula invención o creencia mía y que en todo caso había un solo túnel, oscuro y solitario: el mío, el túnel que había transcurrido mi infancia, mi juventud, toda mi vida. Y en uno de esos trozos transparentes del muro de piedra yo había visto a esta muchacha y había creído ingenuamente que venía de otro túnel paralelo al mío, cuando en realidad pertenecía al ancho mundo, al mundo sin límites de los que no viven en túneles; y quizás se había acercado por curiosidad a una de mis extrañas ventanas y había entrevisto el espectáculo de mi insalvable soledad, o le había intrigado el lenguaje mudo, la clave de mi cuadro.

Talvez a necessidade de ser compreendido seja, aqui, mútua. E Juan Pablo Castel torna-se rapidamente obcecado com a ideia daquela mulher. Confessa-nos como, desde o primeiro momento que a viu, se sentiu louco por ela, de alguma maneira. Após perder a oportunidade de falar com ela na exposição, sonha encontrá-la fortuitamente na rua e imagina tudo o que lhe dirá. E, um dia, isto acontece: na rua, vê e aborda María Iribarne.

La felicidad está rodeada de dolor.

Nada mais existe para Juan Pablo Castel. A ligação que ele sente com María Iribarne consome-o para além da ideia que esta mulher conheceria a mesma solidão que ele; Juan Pablo persegue-a, procura maneiras de a encontrar sem combinar, planeia meticulosamente os seus movimentos, e consegue, finalmente, envolver-se romanticamente com ela. María mostra-se esquiva, mas acede a dar-lhe o seu número de telefone, dizendo primeiro, no entanto, que magoa todos os que se aproximam dela. Mas Juan Pablo não quer saber - Juan Pablo está cego na sua obsessão com esta mulher, que descobre ser casada com um homem (desta vez, literalmente) cego, Allende.

Juan Pablo é prisioneiro da sua solidão, das suas ilusões, da sua paranóia, do seu ciúme, de forma descontrolada. Rapidamente, torna-se frustrante como todas estas características de Castel destroem aquele que poderia ser um simples caso com uma mulher casada, quando pede desta a sua devoção total e drena a relação de qualquer felicidade ou alegria que poderia ter tido, afogando-se no ciúme e isolando-se cada vez mais. E o livro rapidamente se torna numa narrativa brilhante sobre a solidão da obsessão romântica, de forma perturbadora e fascinante. O que sente por María leva-o a sentimentos de culpa, instabilidade, miséria e ódio.

A veces creo que nada tiene sentido. En un planeta minúsculo, que corre hacia la nada desde millones de años, nacemos en medio de dolores, crecemos, luchamos, nos enfermamos, sufrimos, hacemos sufrir, gritamos, morimos, mueren y otros están naciendo para volver a empezar la comedia inútil.

A relação de Juan Pablo com María decai rapidamente, entre as acusações deste quanto à desonestidade da mulher, incluindo dizer-lhe que engana um homem cego, e as desconfianças quanto às estadias numa estância de férias com um primo, conhecido como tendo mau carácter. Num momento, Juan Pablo está com a cabeça no colo de María; no outro, agarra-lhe o braço violentamente, pedindo-lhe confissões por coisas que não fez. Castel chega inclusive a enviar uma carta acusatória e pejorativa a María, arrependendo-se no segundo a seguir e provocando um momento caricato nos Correios.

É uma narrativa com uma carga extremamente pessimista, em parte devido ao seu narrador, neurótico e obsessivo; trata dos lados mais sombrios da existência humana: além da obsessão, temos o ressentimento. Vemos o mundo pelos olhos de Juan Pablo, e todas as demais (poucas) personagens são descritas com rancor, com amargura, com falhas e como tendo características que trazem ao de cima o pior umas das outras. Serão personagens assim tão mesquinhas e terríveis? Claro que Juan Pablo não é um narrador confiável - nada nesta narrativa é imparcial, o que talvez faça com que Juan Pablo não seja uma personagem assim tão detestável e difícil de ler quanto seria expectável.

Juan Pablo é misantropo, solitário, sombrio, e não aprecia a vida - vive na solidão e procura de ligação com a eternidade (a tal compreensão) que motivam a produção artística. É egoísta. E é por isso que fica obcecado com a mulher que visitou a sua exposição, e é por isso que a sua obsessão quase se contagia. A vida de Juan Pablo Castel grita solidão, grita dor, arrasta-se e prende-se no leitor.

5/5

Podem comprar esta edição aqui, ou em português aqui.

Maratona Literária de Verão 2017: 1540 pág.

Comentários

  1. Clássica colecção de livros latinos :p gostei muito da review, dá logo vontade de ler o livro

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  2. Já li o livro - não na língua original, mas sim na tradução da Relógio D' Água, que arranjei a um preço muito bom na FLL - e gostei muito.

    A forma como a personagem principal é construída e o modo como esta escrutina todos os pequenos momentos e acções são bastante interessantes.

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    1. Sim, a personagem principal torna-se obsessiva também com pequenos momentos e acções - é um livro curto mas ai a grandes pormenores! Acredito que a tradução da Relógio d'Água esteja muito boa.

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  3. Convenceste-me. Parece-me uma óptima leitura. E ler na língua original enriquece ainda mais a experiência. Dá vontade de ir a Madrid só para comprar livros. Tão baratinhos e tão bons. :)

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    1. É um livro excelente sim! Recomendo para compra de próxima viagem. Este veio directamente da Casa del Libro da Gran Vía :) quando fui a Madrid arranjei ida e volta pelo mesmo preço que o meu passe (e eu vivo e trabalho em Lisboa), vale totalmente a pena :D perco-me imenso com livros em inglês pelo mesmo motivo - tão baratos e tão bons!

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