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Ruínas

Como mencionado neste post, Ruínas é o livro de estreia do Hugo Lourenço.


Uma memória de infância do Narrador (que não tem nome) traça o início deste livro: o despertar e o cheiro da gasolina, quando, nas longas viagens com os pais, para o Algarve, o pai pára para abastecer o carro.

As memórias são como ruínas, falam-nos de um passado que já partiu e não voltará, mas que foi importante para chegarmos onde chegámos e para sermos quem somos. São o que resta de um tempo que já foi, os seus escombros.

E é partindo desta premissa que o narrador nos revela que algo aconteceu aos seus dois amigos de infância: um faleceu, o outro desapareceu. Não revela imediatamente qual o destino de qual, mas rapidamente nos apresenta Ricardo e Daniel. Se o Ricardo era o "menino bonito da Maria Antónia", a professora da escola primária dos três, por ser bem comportado e inteligente, ao ponto de quererem que ele saltasse um ano na escola, o Daniel era aquele que levava estalos da professora a toda a hora, por se portar mal e se tentar impor. E era o Daniel que salvava o Ricardo de ser o alvo dos bullies da primária.

Contudo, não consigo evitar questionar-me se umas boas sovas não teriam feito bem ao Ricardo.

O Daniel é várias das pessoas com quem andei na escola: cresceu no bairro, vida familiar desfeita, pai alcoólico violento. É, de certa forma, inevitável que o Daniel fuja de casa e se junte à chamada má vida. Já o Ricardo tinha a vida familiar perfeita ao ponto de não poder ser real: família feliz, unida, pais que o apoiavam em tudo, incluindo na sua decisão de ir para o conservatório estudar música. A única coisa que os parece unir é a amizade em comum que têm pelo Narrador.

Porque depois temos o Narrador. O Narrador fala de si enquanto sendo a pessoa mais comum e neutra possível. Assume-se como indiferente, embora as memórias narradas estejam obviamente contaminadas pela sua perspectiva. Conta-nos sobre os seus amigos, mas também nos conta a sua vida. Estudou literatura, trabalhou num call center onde conheceu gente com doutoramentos e depois foi ficando numa bilheteira de um cinema anos a fio, entre pipocas e insatisfação, porque é estável. Cinco anos depois, tem 27 anos e presencia o arruinar das vidas dos seus amigos. E, no desenrolar das suas memórias sobre os mesmos, acaba por se tornar central.

- Se um dia se matassem, como é que o fariam? - repetiu o Daniel, com uma voz séria.

Enquanto o Narrador trabalha no seu emprego monótono, rotineiro, limitado e, lá está - estável, o Ricardo conseguiu uma carreira de sucesso na música, e o Daniel terá tido uma carreira de sucesso no mundo da droga (ninguém sabe ao certo, mas é isso que parece). Ou seja: para os amigos do Narrador, a vida parece ter trazido aquilo que sempre prometia. Isto atinge o seu auge quando Ricardo conhece uma actriz de teatro que é extremamente parecida a Marilyn Monroe, que ele admirava desde novo pela sua beleza quase irreal. No entanto, ao conhecê-la, o Narrador sente que há toda uma fachada para lá da qual o amigo não vê:

Foi o suficiente para me aperceber que já estava melhor da minha azia, provavelmente como resultado de me ter deixado embrenhar pela conversa por uns momentos e ter deixado de me focar naquele olhar de "Sim, estou a ouvir; sim, estou a perceber; sim, estou interessada", que a Marilyn teimava em me dirigir. (...) A Marilyn estava a olhar para mim como se fosse um burro a olhar para um palácio.

O Narrador conhece a Joana, rapariga que trabalha num café perto do cinema onde trabalha. Um dia, metem conversa devido ao Siddhartha, e é rapidamente que se tornam próximos. O Narrador mostra-lhe até os seus escritos sobre os seus dois amigos, um morto e o outro desaparecido, as suas memórias. Fala-lhe também das suas perspectivas para o futuro. E é a Joana que sugere ao Narrador que siga os seus sonhos, que se torne escritor e que largue o emprego no cinema. O que poderia acontecer se, no dia seguinte, ele não fosse trabalhar?

 - Infelizmente, era difícil para o Daniel acabar de maneira diferente. Aquele bairro agarra pessoas como ele. Se tivesse tido outros pais a sua história teria sido outra.

E se, e se, e se? O Narrador discursa sobre como podia ter falado com o Daniel e mudado a sua vida, uma simples conversa que poderia ter tirado o Daniel daquele que parecia ser o seu único destino, e como poderia ter mudado o rumo do que aconteceu aos seus amigos.

Entre conversas sobre arte e cultura, este é um retrato sobre como o Daniel, que nunca teve nada, se afunda, mas o Ricardo, que tinha tido tudo de mão beijada, se afunda também. E o Narrador que, com 27 anos e, como tantos de nós, achava que o mundo lhe tinha prometido tantas possibilidades, se vê confrontado com um emprego precário e estéril. E é, dos três amigos, o único que ainda tem uma chance de mudar de vida.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Maratona Literária de Verão 2017: 1716 pág.

Comentários

  1. Nunca ouvi falar deste livro noutros locais, apesar de tudo não só pelo título do Romance como pelo post parece-me que será deprimente, embora haja pérolas literárias deprimentes.

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    1. Carlos, o livro é relativamente novo - saiu em Abril deste ano, e é o livro de estreia do autor, o que faz com que seja menos comentado. Diria mais que é actual do que deprimente - os "dramas" passados pelas personagens são bastante reais, especialmente a questão do trabalho precário e a insatisfação relacionada com o mesmo. Na minha ânsia de não "desvendar" o final, não dei a entender uma coisa: o final do livro tem uma nota bastante positiva. O Narrador dá o primeiro passo para sair do marasmo laboral e existencial em que se encontra.

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    2. Boa tarde Carlos,

      Antes de mais, obrigado pelo comentário, que é por si só, de certa maneira, uma demonstração de interesse no livro. Aproveito também para agradecer à Bárbara pela exposição que fez do meu primeiro romance e pelo seu comentário, a responder-lhe. Este comentário da Bárbara ainda me fez ponderar se publicava esta resposta ou não, mas acabei por decidir fazê-lo de qualquer modo.

      Eu entendo o porquê do apontamento e creio que, inclusivamente, se justifica. A história começa em in media res e o leitor fica desde logo a saber que o final de duas das personagens centrais da trama estará longe de ser positivo.

      No entanto, apesar dessa faceta trágica do romance, creio que globalmente a mensagem que pretendo deixar no livro é bastante diferente. Sem querer estragar a narrativa, posso dizer que o que quero que fique para o leitor são ideias de ambição e de luta; além de um grande não à inércia e a um ambiente geral de resignação em que muitas vezes nos deixamos afundar hoje em dia.

      Acrescentaria, até, que é uma obra que pretende fazer com que o leitor pare e reflicta sobre o mundo que o rodeia, ao invés de o tentar atingir e marcar pela carga emocional da narrativa.

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  2. Olá, Bárbara!
    Só agora é que arranjei um tempinho para vir "cuscar" a tua opinião! Gostei muito de lê-la, porque, para além de desvendares um pouquinho da narrativa, vais realçando aquilo que ela tem de mais importante e que vai ao encontro do que aqui comentou o próprio autor - "Ruínas" é um chamamento de uma realidade que se encontra bem ao nosso lado e para a qual devemos olhar de frente, absorver, refletir sobre a mesma e agir para que ela sofra as mudanças de que necessita.
    Vou continuar fazer visitinhas assíduas a este teu cantinho!
    Beijinhos.

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    Respostas
    1. Olá, Ana! :) muito obrigada, por teres lido, comentado e por visitares! É verdade, é uma realidade muito presente - e com muito a ser trabalhado para que possa mudar.
      Beijinhos!

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