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Cartas Amorosas de uma Religiosa Portuguesa

Em preparação das Novas Cartas Portuguesas, li as Cartas Portuguesas originais.


Tinha este livro no meu imaginário há quase vinte anos: é mencionado num livro de Alice Vieira, creio que em Rosa, Minha Irmã Rosa, quando uma tia questiona a origem do nome da protagonista, Mariana, pois não conhece mais Mariana nenhuma, só a Alcoforado.

A minha mãe costuma contar que no dia em que lhe disseram que eu ia chamar-me Mariana, a tia Magda virou a cabeça e resmungou: - Mariana, só conheço a Alcoforado, e que eu saiba não era da nossa família. Porque a tia Magda acha que as crianças que nascem têm de ter sempre nomes de pessoas da família, e essa Mariana Alcoforado de que ela falava era uma freira que viveu em Beja há muitos anos, e ficou conhecida por ter escrito um livro que a mãe já me prometeu dar a ler quando eu for crescida. 

Após a citação de Alice Vieira, Mariana Alcoforado dispensa talvez grandes apresentações: nasceu em 1640 e ingressou no Convento da Conceição com 11 anos, onde viria a morrer em 1723. A sua clausura deve-se, por um lado, à promessa da mãe, que a nomeava freira do Convento; por outro, para a salvar da guerra com Espanha. O livro, esse, é composto por cinco cartas que Mariana escreveu ao seu amado, que a abandonou.

A história destas cartas e da sua publicação levantou várias controvérsias: estas cartas foram publicadas em francês por um tal Conde de Guillerages, em Paris, e a identidade do amado de Mariana era, à data, desconhecida; veio-se mais tarde descobrir que se tratava do Marquês de Chamilly, que a abandonara em 1667. As cartas foram um êxito instantâneo. No entanto - terá mesmo sido Mariana a escrevê-las, ou terão sido inventadas pelo Conde de Guillerages? O amor entre uma freira e um cavaleiro, naquela época, não seria assim tão implausível; afinal, a vida de clausura não era assim tão agreste, tendo as mulheres de origem nobiliárquica direito a empregados pessoais, e a visitas por soldados - comportamentos tolerados, mas escondidos.

Segundo o prefácio desta edição, Rousseau, por achar as cartas demasiado belas para serem escritas por uma mulher, negava-lhes a autenticidade. O que lembra um pouco a teoria de Mr Mybug em Cold Comfort Farm, segundo a qual Branwell Brontë teria escrito Wuthering Heights, teoria essa que, aliás, não é uma invenção rebuscada e humorosa de Stella Gibbons, mas que tinha os seus verdadeiros seguidores; mas estas cartas são convincentes demais no tom de dor e sofrimento para terem sido escritas por um homem para fins de entretenimento. Estas cartas são terrivelmente realistas. E claro que ficção pode ser extremamente bem escrita - mas a forma como Mariana fala de D. Brites, da janela, da cidade de Beja - tudo isto dá veracidade às cartas.

Na primeira carta, Mariana relembra o seu amado da primeira vez que estiveram juntos:

Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixão parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.

Os sentimentos são absurdamente vivos; as palavras, de beleza inegável; nesta carta, e na que se segue, Mariana fala de esperança, da sua paixão, acreditando que o Marquês de Chamilly também sente a sua falta. Posteriormente, lamenta ter-se envolvido com ele, sente-se enganada, vítima, acusa-o de se ter aproveitado da sua juventude e paixão. É um bocado chato, confesso - ela queixa-se, e queixa-se, e o leitor sabe que o amor dela está condenado.

Mas a sua escrita está repleta de fervor, e quiçá um bocadinho de loucura. 

Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada. 

Não é uma narrativa inovadora - é mais uma história de uma mulher que amou e foi abandonada. A início, lembra um bocado Les Liaisons Dangereuses - obra de ficção epistolar, francesa, curiosamente -, quando a Marquise de Merteuil fica enciumada do seu amante e tenta fazer com que ele sinta o mesmo. No entanto, novamente - estas cartas, de ficção assumida, são divertidas, é uma história de intriga, no fundo, e não tão emocionais como as de Mariana. É impossível divertirmo-nos com o desespero dela. O desespero dela é real, mesmo que as cartas não o sejam.

Mariana passa, portanto, da confiança cega no amor do homem que a abandonou, para o sentimento de engano, desilusão, traição, infelicidade, e o derradeiro adeus. Menciona a certa altura, quase corriqueiramente, como se meteu em sarilhos, pois o caso foi descoberto pela sua família e pelo convento. Parece corriqueiro porque, lá está, para ela a maior desgraça é o fim da relação. São cartas de emoção exagerada, são cartas que podem levar a pensar "menos, Mariana, menos, é só um tipo qualquer" - mas Mariana Alcoforado, a pessoa real, tal como tantas outras mulheres ao longo da história, foi enclausurada num convento, foi praticamente enterrada viva ao serviço da religião porque a família dela assim decidiu, assumindo aquilo que seria o "seu bem", sem saber o que a poderia servir melhor. Tinha 11 anos e a sua vida foi entregue à clausura, à religião, sem vocação ou vontade. Se o mundo é pequeno, um convento ainda é mais.

Nunca reflectiu na maneira como me tem tratado? Nunca pensou que me deve mais obrigações do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma louca, tudo desprezei! O seu procedimento  não é de um homem de bem. É preciso que tivesse por mim uma aversão natural para me não ter amado  apaixonadamente. Deixei-me fascinar por qualidades bem medíocres. Que fez para me agradar? Que sacrifícios fez por mim? Não procurou tantos outros prazeres? Renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para campanha? Não foi o último a regressar? Expôs-se loucamente, apesar de tanto lhe haver pedido que se poupasse por amor de mim. Nunca procurou um meio de se fixar em Portugal, onde era estimado. Uma carta de seu irmão bastou para o fazer abalar, sem a menor hesitação. E não vim eu saber que, durante a viagem, a sua disposição era a melhor do mundo?

E ter a noção, por mais vaga que seja, que o destino de Mariana foi ir para um convento, por ser mulher, e sofrer a desonra de ser abandonada, também apenas por ser mulher (Chamilly não teria de "tudo desprezar" ou ter "vergonha" ou "pudor" pelo sucedido - não há problema na descoberta do caso, como Mariana teve com a família e com o convento), torna a obra mais forte.

5/5 pela emoção crua e sentimentos que, inadvertidamente, levanta

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. 'O que lembra um pouco a teoria de Mr Mybug em Cold Comfort Farm' ahah clássico :p

    'Mas a sua escrita está repleta de fervor, e quiçá um bocadinho de loucura.' gosto tanto da maneira como escreves

    'Que fez para me agradar? Que sacrifícios fez por mim? Não procurou tantos outros prazeres? Renunciou ao jogo e à caça?' outros tempos como já me disseste mas achei piada :p

    Gostei muito do post, dos meus preferidos! O livro parece bem interessante, emprestas-me um dia sff?
    Melhor blogue

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    1. Cold Comfort Farm é alto clássico sim :p

      Oh :$ obrigada :$

      Haha sim, outros tempos, outros hobbies :p

      Muito obrigada :$ empresto claro :D sabes que o teu blog irá destronar todos os outros, porém :$

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  2. Olá Bárbara,
    Li há muito tempo o Mariana, de Katherine Vaz e lembro-me de ficar com vontade de ler as cartas. Achei fascinante a vida (obviamente romanceada) da Mariana Alcoforado. O tempo foi passando e fui deixando de lado essa curiosidade.
    Com este post voltei a ter vontade de ir à procura desse livro.
    Obrigada e Boas leituras

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    1. Olá, Patrícia! Nunca tinha ouvido falar nessa obra e agora fiquei curiosa :) é sem dúvida uma mulher fascinante - mais não seja por tudo o que inspirou. O livro é fácil de encontrar, coisa que nunca tinha pensado que fosse. Espero que o leias em breve e que gostes, irá sem dúvida complementar essa leitura!

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  3. A seguir:
    Novas cartas portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa ;)

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    1. Claro que foi por recomendação da Cristina que li este primeiro :) esse está ali na estante quase quase a ser agarrado - estou a ler um outro da Maria Teresa Horta de momento, "Meninas".

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