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A Hora da Estrela

A dose anual de Clarice.


Este é o último livro da autora, uma novela na qual é relatado um tema ainda actual: a pobreza no Brasil. Rodrigo SM, o misterioso narrador do livro, diz que vai falar de uma outra pessoa, cuja identidade, a início, não é clara, no meio do monólogo errático do narrador - mas finalmente conhecemos Macabéa, a nordestina que procura uma vida melhor na cidade grande.

– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
– Macabéa.
– Maca - o quê?
– Bea, foi ela obrigada a completar.
– Me desculpe mas até parece doença, doença de pele.

Rodrigo confessa a sua dificuldade em escrever sobre Macabéa, e é fácil compreender porquê.

Macabéa é uma pessoa... diferente. Rejeitada desde a infância, em Alagoas, onde nascera, órfã desde muito cedo, maltratada pela tia que a criou. Mal Macabéa se tornou maior de idade, a tia procurou ver-se livre dela, e arranjou-lhe um emprego, ainda antes de morrer, no Rio de Janeiro, como dactilógrafa. Macabéa vive num cubículo, numa casa que partilha com quatro outras mulheres num bairro de lata, é feia e não se apercebe, é demasiado pobre para comer o que quer que seja para além de cachorros quentes, Coca Cola ou café, e não conhecia o amor. É calada, porque não tem nada para dizer. Macabéa tem dificuldades em sentir emoções humanas, em saber o que é a felicidade ou a tristeza, em saber que está viva; está para além de qualquer salvação. E é péssima no seu emprego e é quase despedida, não fosse a falta de coragem do chefe para o fazer.

Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão) nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe:
– Me desculpe o aborrecimento.

E toda a gente vê Macabéa da mesma maneira: um caso perdido. A certa altura conhece Olímpico, também nordestino, que se torna mais ou menos seu namorado, muito por pena da vida vazia dela - mas Olímpico é ambicioso, quer mais na vida do que aquilo que a vida lhe consegue dar, e sabe que não irá muito longe com Macabéa. Macabéa, a sua burrice e mesmo as suas perguntas mais pertinentes (às quais Olímpico não consegue responder) aborrecem-no profundamente.

Da terceira vez em que se encontraram - pois não é que estava chovendo? - o rapaz, irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:
– Você também só sabe é mesmo chover!
– Desculpe.
Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava em desespero de amor.

E, eventualmente, decide não querer nada com ela, ao conhecer Glória, a colega de trabalho sensual e única amiga de Macabéa, cujo pai era dono de um talho - a oportunidade!

Mas Macabéa tem esperança. Tem esperança na sua relação com Olímpico, e não sente a dor da sua vida - a dor que nós, como leitores, sentimos. Porque Macabéa é ainda mais burra do que é pobre, e é isso que a faz conseguir sentir-se, não feliz, mas subsistir na ignorância do quão triste e miserável realmente é. Não consegue perceber o que lhe falta, tudo o que lhe falta, o quão nulas são ela e a sua existência.

Quem antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada em cheio no chão. É que “quem sou eu?” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.

O narrador, esse, está demasiado entretido no acto de escrever, tendo por vezes de fazer pausas na sua própria narrativa, frustrado com a sua personagem principal, levando a uma reflexão sobre a relação entre autores, narradores e personagens.

(Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer piedade). Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo.

Será que Clarice também gritou o horror através de Macabéa?

A Hora da Estrela é um livro de abandono e solidão, que ainda assim consegue dar algum conforto. Está repleto de momentos lindíssimos, escrita maravilhosa, com alguma tristeza, drama e humor. É impossível não adorar Macabéa, do alto da sua nulidade, da sua inconsciência de existir, das horas que gasta a ouvir rádio. Macabéa é um detalhe inconsequente na vida; está subnutrida (confirmado pelo médico que, a conselho de Glória, visita), doente, suja, inocente, não tem qualquer ligação com o mundo. Mas é a sua inconsciência que a liberta - é o não saber as condições em que realmente vive que a fazem ignorar o quão infeliz é.

E como é possível, também, que apenas no momento da sua morte Macabéa sinta a vida? Uma pessoa que nunca sentiu alegria nem tristeza, prazer ou dor.

Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.

E todos estes julgamentos sobe Macabéa vêm, na verdade, de Rodrigo - quão fiável será este narrador? Será ela realmente de tão pouco valor assim? Por que é que deixamos Rodrigo (um homem, deliberadamente um homem) decidir isso?

Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era morrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofende-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.

Macabéa não tem voz. Para ouvirmos Macabéa - e todas as Macabéas do mundo, pessoas que vivem escondidas, pobres, sem nada, invisíveis - é preciso que alguém fale por ela.

5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Adorei! Nunca li nada de Clarice Lispector, embora já tenha tido vontade. Se a minha biblioteca tiver este, vou tentar lê-lo e dar voz a Macabéa.
    Obrigada pela opinião e pela recomendação! Deixou bichinho ;)

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    Respostas
    1. Ana, em 2015 comprei o meu primeiro livro da Clarice (A Paixão Segundo GH) e desde então tenho mantido uma tradição anual de comprar e ler um por ano. Este é, até agora, o meu preferido! Espero que o encontres, e que gostes! Beijinhos!

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  2. Boa fotooo

    'Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.'

    'ela era café frio' damn

    Quando irei ler Clarice? Talvez 2019 seja o ano, estou muito curioso

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