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A Sucessora

O livro que se desconfia que Daphne du Maurier plagiou.


Começo por dizer que li Rebecca há uma boa meia dúzia de anos e achei um muito bom livro (não como adorei My Cousin Rachel), não obstante a narradora tontinha que só sabia dizer coisas como "I'm so glad" e afins. Nunca vi o filme do Hitchcock, porque sei ser diferente numa parte essencial da história e fui adiando, mas lá chegarei.

Ora, há uma enorme polémica porque consta que Daphne du Maurier se baseou nesta obra para escrever RebeccaA Sucessora passa-se no Brasil, nos anos 30, e a sua publicação antecede a de Rebecca por alguns anos, confere. Se formos pegar naquela outra polémica de Max e os felinos vs Life of Pi, o Brasil parece ser um bom lugar para ir buscar inspiração literária. Se formos pegar nos clássicos gregos, percebemos que eles  iam todos buscar inspiração ao mesmo sítio, porque há umas cinco Medeias e Electras diferentes e já Aristóteles dizia que há praí cinco histórias diferentes e tudo deriva daí.

Ora adiante.

Marina é uma rapariga de 20 anos que vive no meio rural, na Fazenda de Santa Rosa, no interior do Estado do Rio de Janeiro. É uma rapariga simples, que gosta das flores, da natureza e de ler e que, sem saber bem como, dá por si noiva do seu primo Miguel, por quem sempre nutrira uma grande amizade, mas nada mais.

Tinha livros sérios e livros infantis. Gostava de filosofia, que mal podia entender, até de S. Tomás de Aquino, e não deitara fora as obras de Madame de Ségur, que a haviam encantado na infância. (...)
Era graças a Miguel que Marina podia olhar, confiante, para a escolha dos seus livros, alinhados na nova estante. Muitos haviam sido presente do primo. Diversos traziam dedicatórias na letra pequena e nervosa, dedicatórias que variavam entre a fantasia e o conselho, entre a palhaçada e a ternura, acalorando-se com o passar os anos (...)

Sentia-se, aliás, através da obra, que Miguel, mais velho, vinha ao longo dos anos a preparar os gostos de Marina para combinar com o seus, a prepará-la para ser um dia sua esposa. O que é, de qualquer modo, meio assustador. Miguel tem, aliás, uma irmã, Adélia, com cuja futilidade nunca se preocupou e cujos gostos nunca quis cultivar; e, quando se sabe que Roberto, um viúvo rico da cidade, vai visitar a fazenda, por estar interessado em negócios lá perto, é Adélia que lembra que a sua falecida esposa, Alice, era a pessoa mais importante e influente e interessante da sociedade do Rio de Janeiro.

Roberto tem cerca de 15 anos a mais que Marina, e vem de um mundo completamente diferente; mas a atracção entre ambos é imediata e Marina, ao contrário do que a mãe queria para ela, termina o noivado com o primo Miguel, para se casar com Roberto, em cuja mansão se instalam após a lua-de-mel.

Mas Marina vinha de outro meio. O Brasil dela era o velho Brasil agreste dos antepassados fazendeiros. Roberto tinha sangue estrangeiro, tinha avós dos Flandres, emigrantes de terceira classe. Os de Marina haviam sido por muitas gerações proprietários de Santa Rosa, a fazenda mais antiga do estado do Rio. (…) Através dos tempos coloniais e do Império, Santa Rosa criara na família fortunas e questões, até à Abolição que a sorvera. Agora agonizava.

Numa sala, um retrato de Alice, pintado por Verron, que Roberto crê ter pedido que fosse retirado. Para aparentar confiança, Marina diz a Roberto que não tem importância, e que o quadro pode lá ficar - mas Marina sente dificuldade em se integrar no grupo de amigos de Roberto, de uma sociedade urbana, industrial e nova-rica, cujas vidas se centravam no luxo, moda e coisas vápidas afins. Todos adoram ainda Alice e não param de falar nela. E porque Marina sente alguma superioridade intelectual face aos interesses mundanos dos amigos de Roberto, que a aborrecem, sente-se insegura e acha que nunca irá pertencer, corresponder a expectativas que julga que Roberto criou quanto a ela.

Mais que isso, descobre que Alice deixou uma lista de coisas para a futura esposa de Roberto seguir de modo a fazê-lo feliz, o que, embora mostre que ela acreditava que Roberto voltasse a casar, mostra também que Alice conhecia perfeitamente o marido, e Marina não. E começa a sentir que Alice, a mulher perfeita, tem presença dominante em todos os campos da sua vida, seja social, seja doméstica.

Marina entra numa crise de identidade e numa crise conjugal unilateral.

A Sucessora é um livro de costumes, mostrando as disparidades entre a realidade social brasileira entre o Brasil rural e tradicional (há conversas sobre a abolição da escravatura, por exemplo), e o Brasil urbano, de costumes modernos, fúteis. Além disso, é um drama psicológico, mostrando a prisão de Marina às convenções sociais (ao papel tradicional que a sua mãe lhe tinha ensinado), confrontadas com os novos costumes do Rio de Janeiro urbano - e o ciúme por Alice, que a domina e a faz procurar incessantemente uma falha na falecida primeira mulher de Roberto.

 - Que é? Esqueci alguma coisa? Que mala é essa?
Marina respondeu, ofegante da corrida:

 - É minha. Resolvi ir contigo. Quero conhecer S. Paulo e não quis ficar no Rio sozinha...
Roberto pareceu espantado com a sua resolução repentina, mas gostou.
 - Toda a mulher tem caprichos e esposas não se contrariam - disse. - Sobe depressa. Faltam só dois minutos.
Marina lembrou-se de que Alice era caprichosa e que suas extravagâncias e os seus rompantes de génio eram, aos olhos de Roberto, defeitos encantadores, porque o divertiam.

Tentei ler o livro sem procurar as semelhanças com Rebecca; algumas eram realmente visíveis, é certo - o casamento de uma rapariga nova com o viúvo de uma mulher extremamente popular, a presença dominante desta mulher na vida da segunda esposa, a quase assombração, o ciúme, a ideia da perfeição inalcançável da falecida. Mas a partir daqui, toda a história difere: Marina tem uma história, uma família, um passado - tem, acima de tudo, um nome. Não está sozinha no mundo, e tenta fazer algo acerca da presença de Alice, que vem, acima de tudo, de uma simples pintura.

Acima de tudo, não tem um crime ou um mistério por trás - é apenas a história de uma rapariga que é assombrada pela imagem da ex-mulher do marido.

O parvo é que ela podia ter pedido, a qualquer momento, que retirassem o quadro da parede; já a narradora de Rebecca não se livraria de Mrs. Danvers assim tão facilmente...

O ponto fraco de A Sucessora é, para mim, o final. Gostei muito do conflito interno de Marina, mas não do final que lhe foi reservado, ou da "falha" que descobriu em Alice e que a fez, finalmente, aceitar o passado de Roberto.

3,5/5

Esta obra parece ser impossível de encontrar à venda - que editora se chega à frente?

Comentários

  1. 'alinhados na nova estante' e a nossa estante? :p

    'ou da "falha" que descobriu em Alice e que a fez, finalmente, aceitar o passado de Roberto.' o que terá sido? :o uma traição? :o fico espantado com a nota que dás ao livro, pelo que escreveste achei que o livro deve ser bem interessante mesmo

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    1. Quero estantes nossas :(

      A nota que dei reflecte a minha desilusão com o final :$ que não vou contar :o

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  2. Ainda não li "Rebecca" nem "My cousin Rachel", mas tenho os dois na wishlist da biblioteca! Já tinha ouvido zunzuns sobre um possível plágio, mas não sabia que a obra visada/"original" era esta. Acho que vou ler primeiro as de Daphne du Maurier e depois, se tiver a sorte de encontrá-la" leio "A sucessora".
    Beijinhos e gostei muito do teu texto!

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    1. Ana, o "My Cousin Rachel" é favorito! Adorei totalmente :) o "Rebecca" não tanto, mas é muito bom também. Este também é bom, é mais drama psicológico da rapariga inocente confusa com a vida e o amor e aquela noção de juventude que se sente ameaçada pelo passado do marido e não o conseguir alcançar, sabes?, mas o final é pobrezinho... infelizmente.
      Espero que o consigas encontrar! Está esgotadíssimo, infelizmente!
      Beijinhos e obrigada :)

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  3. Já tinha ouvido falar dessa polémica e do possível plágio, mas ainda não li o "Rebecca". Fiquei curiosa e com vontade de ler este, acho que lerei o primeiro com que me deparar. ;) No outro dia passei pelo da Carolina Nabuco num dos leilões de livros no Facebook mas passei à frente.
    Em relação à "A Minha Prima Raquel" vi o filme protagonizado pela Rachel Weisz e gostei bastante, um dia destes leio o livro.
    Jinho:)

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    1. É pena não o teres comprado! É um bom livro, interessante maioritariamente por esta curiosidade, mas não deixa de ser uma boa leitura.
      Não vi esse filme! Mas quero muito :)
      Beijinhos!

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  4. Dizia eu no comentário desaparecido que me lembrei finalmente de aqui vir depois de ler sempre os teus comentários em blogues que sigo. Espero que não te importes com o "tu", mas acho que livros
    e formalidade não combinam!
    Nunca li A Sucessora, mas lembro-me vagamente de a telenovela passar na RTP, na altura em que a ficção televisiva se baseava em livros de grandes autores, como A Ciranda de Pedra, o Meu Pé de Laranja Lima e Olhai os Lírios do Campo. Isto revela mais sobre a minha idade do que seria desejado, mas enfim... :-) Se nunca leste este último, o do Erico Veríssimo, aconselho, é excelente.
    Paula

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    1. Por favor, "tu" sempre! Comigo não há qualquer necessidade de formalidades :) especialmente se já andamos a "frequentar" os mesmos sítios!
      Não conheço a novela, embora a minha mãe me tenha falado nela - desses, lembro-me de ver uma adaptação do Meu Pé de Laranja Lima, mas é de 2000 ou assim. Li o livro na altura (já carece de releitura...). Vou anotar a recomendação! Muito obrigada!
      Sobre televisão baseada em livros, estou a ver mais ou menos a "Tieta", que está a dar na Globo; li o livro há uns anos (ADORO Jorge Amado), e aquilo foge tanto do livro... embora reconheça o valor da adaptação.

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