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Correr

Odeio correr. Na verdade, não importa, porque a actividade me está clinicamente vedada.


Porquê ler um livro com este título, então?

Correr chamou-me a atenção, apesar de tudo, pelo título. Não costumo ler livros sobre desporto (apenas aconteceu uma vez, que eu tenha memória), mas o título, um simples verbo, intrigou-me.  Sou uma pessoa curiosa, suponho. Depois, vi que era sobre um atleta checo, e a República Checa é, à data, o país que mais gostei de visitar. Por último, percebi que se passava durante a Guerra Fria, "na sombra do regime comunista".

O subtítulo, muito pequeno, muito discreto, diz, no entanto, romance. Ora, é um livro romanceado sobre uma pessoa real, não exactamente uma biografia; diria que os factores distintivos aqui serão o facto de, durante grande parte do livro, o nome "Zatópek" não ser pronunciado (o narrador apenas se refere ao personagem principal como "Emil"), não ter fontes citadas e não se focar em grandes pormenores técnicos da sua carreira, como tempos de provas, datas específicas, etc.

Emil Zátopek viveu entre 1922 e 2000 e foi um atleta muito conhecido, tendo ganhado várias medalhas de ouro olímpicas e estabelecido vários records em várias categorias do atletismo, batendo os seus próprios records variadas vezes. Nunca tinha ouvido falar nele, porém. Emil era um jovem banal, de uma família humilde, que começou a trabalhar aos 16 anos na fábrica da Bata (a sapataria), na cidade de Zlín. Acompanhamos a invasão da Checoslováquia pelos Nazis, que promovem eventos desportivos nas empresas, e a iniciação de Zátopek na corrida, quando o seu empregador o escolhe para uma prova de atletismo.

Relutante, Zátopek não tinha qualquer interesse em desporto ou corrida - mas descobriu-se com uma enorme vontade de ganhar, tendo ficado em primeiro lugar. E descobriu que era muito rápido.

Deixa-os para trás e continua sozinho, desfrutando da sua descontracção. Passada regular, expressão serena, Emil responde com pequenos sinais aos gritos do público, apinhado ao longo do percurso, troca algumas piadas com os ocupantes das viaturas de acompanhamento da prova, faz arregalar os olhos àqueles que ainda se espantam com a sua esmagadora superioridade. É a primeira vez que sorri a correr, com todos os seus grandes dentes, enquanto olha para a paisagem. É por um triz que não assina autógrafos à sua passagem, que não comunica as suas impressões acerca do amável campo finlandês, um alegre cenário de abetos e de campos de cevada, de pedras escuras e de bétulas, de lagos reluzentes de sol.

Segue-se a "libertação" da Checoslováquia pelos russos; Zátopek, que já começava a ter mérito nacional, aproveita o fim da guerra e a possibilidade de remilitarização do seu país para se juntar ao exército, onde pode correr e fazer exercício. Acontece que é utilizado pelo exército enquanto objecto de promoção do regime comunista, mas Zátopek é um homem humilde e vai sorrindo e aceitando, porque lhe permitem correr, fazer aquilo que gosta - as suas vitórias no exterior são motivo de glória nacional, sendo apresentado como exemplo do "bom comunista" e progredindo na carreira militar.

Aprendemos sobre o seu casamento com Dana Zátopková, também ela atleta olímpica, sobre as corridas que ganha, que perde e sobre a glória nos Jogos Olímpicos de Helsínquia em 1952, quando ganhou medalhas de ouro nos 5000m, 10000m e na maratona (que nunca havia corrido). Isto é sobrehumano, isto é magnífico. Zátopek tinha um estilo de corrida muito... característico, e era conhecido como Locomotiva.

Longe dos cânones académicos e de qualquer preocupação de elegância, Emil progride de uma maneira pesada, descomposta, torturada, toda aos repelões. Não esconde a violência de um esforço que se lê no seu rosto crispado, contraído, deformado, continuamente torcido por um esgar penoso de se ver. Os traços do seu rosto são alterados, são quase rasgados por um sofrimento horroroso, como se tivesse um escorpião alojado em cada sapatilha. Tem um ar ausente quando corre, terrivelmente alheado, tão concentrado que não parece ali estar, excepto que está lá mais do que ninguém e, recolhida entre os ombros, sobre o seu pescoço sempre inclinado para o mesmo lado, a sua cabeça oscila incessantemente, bamboleia-se e sacode-se da direita para a esquerda.

Mas os seus movimentos, viagens, provas e entrevistas são controlados, regulados e distorcidos pelo governo, que tanto o enaltecia como o proibia de viajar (com medo que fugisse para o bloco ocidental). Apesar de tudo, Zátopek teria uma vida boa: um casamento feliz, uma carreira da qual gostava, vivia num país do qual gostava e que podia representar, ia conseguindo vergar o governo para ir correr a provas internacionais... até que chega a Primavera de Praga (numa altura em que já não competia) e decide apoiar Alexander Dubček, envolvendo-se na política nacional e afrontando a URSS. Aqui, é retirado do Partido Comunista, perde o seu emprego militar e é banido de Praga, sendo obrigado a fazer trabalhos ou perigosos ou supostamente humilhantes.


Mas Emil Zátopek sorri. É um homem simples e humilde e aceita. Aqui, mais que um desportista lendário, torna-se, para mim, num exemplo de resiliência e resistência num mundo totalitário e opressivo, tendo sobrevivido a duas ocupações no seu país, nunca tendo tido qualquer garantia que o seu talento o ajudaria.

Não importa quando, não importa quem, as pessoas podem dar por si numa prisão ou num campo, por razões que geralmente ignoram. Acabam lá na maior parte das vezes menos por aquilo que pensam do que por incomodarem alguém que detém o poder de as enviar para lá.

Acima de tudo, gostei da forma como este livro trata da vida de um homem que sempre lutou para conseguir os seus objectivos, sempre se desafiou e teve coragem de desafiar o regime... uma pessoa que fez aquilo de que realmente gostou - e em que descobriu ser bom - apesar de todos os obstáculos políticos que lhe apresentaram.

4,5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Pois, correr só se for para apanhar o transporte público, porque a ideia de ficar 15 minutos à espera stressa-me. Mesmo com um livro na mão.
    Vais achar que estou a inventar, mas ainda na semana passada comprei por acaso um livro deste autor que me era totalmente desconhecido, "Ravel", por gostar muito do "Bolero". Não passei das primeiras páginas, mas isso não interessa, porque não fica bonito aqui na minha história. ;-)
    Fui ao YouTube ver um bocadinho das corridas dele e fez-me lembrar a Nadia Comaneci, que também se concentrava de mais para sorrir. Eu se vivesse naquele regime também não havia de sorrir muito...
    Paula

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    1. Se há maior frustração que perder o autocarro, eu juro que não a conheço! Também é a única altura em que corro, e mesmo isso custa-me horrores :)
      Pelo que consegui apurar, há (pelo menos) mais uma "biografia ficcionada" (ou, em francês, biographie romancée) deste autor (que também desconhecia por absoluto), para além deste livro e da tua recente aquisição (da qual espero que gostes, e fico à espera para saber tudo!) - Des éclairs, sobre Nikola Tesla.
      Excelente ponto - que motivos haverá para sorrir num regime tão absolutamente repressivo...?

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  2. Eu gosto muito de correr, do teu blogue, e do Emil Zátopek. Hás de reparar nas provas que há pessoas cujo nome da equipa é Zátopeks :p
    Ele é uma inspiração a muitos níveis, fico feliz por teres lido o livro, principalmente sabendo que não é bem o teu género, livros sobre desporto

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    1. Nunca reparei, mas irei reparar :o sei bem que és alto atleta :p
      Achei mesmo muito inspirador! Será que livros sobre desporto não são o meu género? :o só tinha lido um antes deste!

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    2. Pois, se calhar até são Ba, não gostaste do Fever Pitch? Eu acho que, por muito estranho ou mesmo contraditório que possa parecer, não se precisa exactamente de gostar de desporto, ou de o fazer, para se apreciar um livro sobre; quem diz desporto diz música, cinema, seja o que for
      Eu não gosto de todo do tipo de sentimentos super negativos e mega intensos retratados/expostos no wuthering heights p.ex. e é dos meus livros e, já agora, filmes favoritos
      Provavelmente como muitas vezes foi mais um conjunto de frases sem sentido o que disse mas é o que penso, I guess

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    3. Gostei pois :p
      Bem, acho isso legítimo, e faz-me todo o sentido, tipo, posso gostar de um livro sobre um homicídio ou outro tipo de crime e não querer cometer um? :o posso gostar de ler a memória do 50 Cent e não ser fã da sua música :p

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    4. Exacto, só que nesse caso concreto ambos sabemos que curtes bué do 50 Cent e como não!

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    5. Ainda me lembro quando me disseste para prestar especial atenção à Just a Lil Bit :$

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  3. Pelo que dizes e pela cotação atribuída parece-me que foi uma excelente escolha! Beijinhos*

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    1. Eu gostei muito - um homem sem dúvida inspirador, único, uma bela história :) recomendo!

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