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The Passion of New Eve

Li o The Bloody Chamber há dois anos e achei um livro incrível. Quando vi todo um conjunto de livros da Angela Carter à venda por um preço baixo no eBay, tive de aproveitar.


Em 2007 li o Orlando, da Virginia Woolf, que é um livro que achei um bocado aborrecido, mas que se calhar não tinha a maturidade para compreender; aqui, como no Orlando, um homem transforma-se numa mulher. Este é muito provavelmente o livro mais bizarro que eu já li, e eu leio muita coisa estranha. Às vezes, vá.

Evelyn (um homem, como o Waugh), britânico, é-nos apresentado desde o início como misógino, esquecendo-se dos nomes das mulheres com quem se envolve, tendo uma certa obsessão desde criança com uma actriz de filmes mudos, Tristessa St Ange, a mulher perfeita, a representação de tudo o que é feminino, uma personagem que objectifica, que perde encanto quando mostra um lado mais humano.

Acontece mesmo, mesmo muita coisa neste livro. Evelyn vai para NY para ser professor universitário, num mundo em que os EUA estão sob uma estranha guerra civil, um estranho cenário distópico com várias facções extremistas, raciais, de género. Neste contexto, a proposta de emprego que levou Evelyn para o outro lado do Atlântico não se concretiza, mas ele recusa-se a voltar para casa. Entretanto, conhece Leilah, uma prostituta/dançarina exótica, por quem sente uma paixão quase hipnótica.

She was a perfect woman; like the moon, she only gave reflected light. She had mimicked me, she had become the thing I wanted of her, so that she could make me love her and yet she had mimicked me so well she had also mimicked the fatal lack in me that meant I was not able to love her because I myself was so unlovable.

A relação com Leilah é por vezes demasiado sexualmente descrita e roça o abusivo e, quando as coisas correm mal, Evelyn foge, decidindo fazer uma road trip pelos EUA - e as coisas tornam-se muito, muito estranhas.

Após o seu carro avariar no meio do deserto, Evelyn é capturado por um grupo de mulheres militantes, que vive numa cidade chamada Beulah e que actua sob uma divindade de seu nome "Mother" - e é submetido a uma operação para se tornar na mulher perfeita, Eve. A mulher que sempre desejara. Ironicamente, parte da programação psicológica (porque a operação não passa só pelo físico) envolve ver filmes protagonizados por Tristessa.

Mother has made herself into an incarnated deity; she has quite transformed her flesh, she has undergone a painful metamorphosis of the entire body and become the abstraction of a natural principle.

Eve habitua-se lentamente à sua nova condição e volta a fugir, desta vez deste grupo de mulheres, sendo posteriormente capturada por Zero - um homem que possui uma espécie de seita com sete mulheres que o vêem como a um deus, que se submetem ao seu abuso como se de protecção se tratasse. Eve é incluída nesse harém de mulheres, e é repetidamente vítima de violação. Acontece também que Zero tem um alvo a abater, que sente ser o grande obstáculo à sua masculinidade - e esse alvo é nada mais, nada menos, que Tristessa St Ange.

Aqui as coisas tornam-se muito, muito estranhas, e vou ser breve, porque é mesmo tudo muito estranho - mas Zero localiza a casa de Tristessa, leva a sua seita de mulheres (Eve incluída) para a destruir, e descobrem que Tristessa afinal era um homem, um homem incrivelmente perdido no seu corpo, que se havia tornado na mulher perfeita.

When I saw Tristessa was a man, I felt a great wonder since I witnessed, as in a revelation, the grand abstraction of desire in this person who represented the refined essence of all images of love and the dream.

Tristessa e Eve, protagonistas desta história, partilham a dualidade de género - inevitavelmente, apaixonam-se e têm toda uma relação, consumada fisicamente - até que um grupo militante de crianças termina com tudo, num twist completamente bizarro e inesperado.

A história acaba de uma forma muito circular, dando uma ideia do eterno, do recorrente, do acabar onde se começa, do retorno ao lugar de origem.

É um livro muito marcadamente feminista - mas mais que isso, é um livro sobre questões de género, confusões de género, sentir-se mal no próprio corpo, ir para além das convenções de género. E é um livro tremendamente bem escrito, mas é um livro no qual acontece muita, muita coisa, incluindo pseudo-pornografia, violência de género, raptos e afins - mas não senti que a ideia de uma mudança de sexo forçada fosse necessariamente utilizada para mostrar a uma personagem masculina aquilo por que uma mulher vitimizada passa.

Mas é um livro muito estranho.

3.5/5

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