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Dona Flor e Seus Dois Maridos

Já toda a gente sabe que sou fã do Jorge Amado.


O livro começa, sem rodeios, com a morte do primeiro marido de Dona Flor, morte essa que diz logo imenso sobre a personagem:

Vadinho o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no Cabeça onde o uísque correra farto à custa de um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário. 

Vadinho era incorrigível, viciado no jogo, alcoólico e adúltero. Dona Flor sempre aceitara esses comportamentos, não sem desgosto, e apesar de tudo numa paixão intensa. Flor é uma mulher respeitável, professora de culinária numa escola de algum prestígio, Flor e Vadinho são completamente opostos e tanto amigos como família (especialmente a mãe, Rozilda, que toda a gente detesta) vê com maus olhos o casamento. Rozilda fica, aliás, contente com o acontecimento:

- A pobrezinha sofreu na mão dele. Comeu o pão que o diabo amassou...
- Porque quis. Não por falta de conselho meu... Não fosse tão assanhada, tivesse me ouvido... Fiz o que estava em minhas mãos...
Perorava assim Dona Rozilda, mãe de Dona Flor, nascida para madrasta, tentando com denodo cumprir sua vocação.
- Mas ela estava com o bicho carpinteiro, estava de pito aceso, Deus me livre, não quis ouvir nada, se revoltou... E encontrou quem apoiasse, casa para se esconder... 

No entanto, Dona Flor sofre com a morte do seu marido. Nas páginas seguintes, temos várias memórias da sua vida de casados, das traições de Vadinho, dos tempos de namoro apressado, do seu charme, dos seus vícios, da sua má vida, de tudo o que Dona Flor tolerava. Ao início, apesar do luto pelo marido, Dona Flor sente-se aliviada, pois pode manter a sua vida social, a sua escola, as suas economias, sem a intromissão do marido.

O tempo vai passando, mas algo falta a Dona Flor - e toda a gente nota que ela não é mais a Flor alegre de outrora. Que é que lhe pode faltar? Não é dinheiro, que o marido já não lho rouba, não é a vida social, que ela continua a sair com as vizinhas, não é ocupação, que ela trabalha - é a parte física da relação com um homem, aquilo que a mantivera com Vadinho tantos anos. Ela acaba por confessar isto a uma das amigas, Dona Norma, e partem todas, amigas e vizinhas, em busca de um pretendente para Dona Flor, ainda demasiado nova (e necessitada) para ser viúva.

Após um quase-encontro com um charlatão, Dona Flor apercebe-se que conquistara o interesse de Doutor Teodoro, farmacêutico de respeito. Após um namoro e um noivado recatados, casam-se, desta vez com aprovação da própria Dona Rozilda. Teodoro tem toda a consideração por Dona Flor, é bom, leal, fiel, trabalhador, seguro. Dona Flor é feliz com ele - mas ele é extremamente aborrecido, e Dona Flor sente-se vazia quando toda a gente acha que agora sim, ela vai ser feliz. É um homem com o seu próprio negócio, trabalhador, culto, inteligente, um homem no qual ela podia confiar a todos os níveis - mas para ele tudo tinha um lugar e uma hora, e isso incluía sexo (quartas e sábados às dez da noite, como Jorge Amado lembra frequentemente).

Dona Flor sente saudades de Vadinho, e aqui acontece algo completamente imprevisível: após um ano de casada, Dona Flor é visitada pelo fantasma do primeiro marido, que começa a viver com o casal e a tentar a mulher, que quer ser esposa respeitável do seu segundo marido, tão bom para ela, que ela sente que não merece por ser tão superior. Dona Flor sente-se tentada, é-lhe difícil resistir à tentação. Será que estar com o seu falecido é traição? Esta é uma crise moral real para Dona Flor. 

Vadinho em fantasma é o mesmo Vadinho que era em vida, não confiável e viciado no jogo e em mulheres. Teodoro de nada desconfia e sente-se feliz ao lado da sua esposa. O que é mais importante, a paixão ou a paz doméstica?

Também do meu amor precisas para ser feliz, desse amor de impurezas, errado e torto, devasso ardente, que faz sofrer.

Seria o fantasma de Vadinho um mero fantasma? Qual a decisão que Dona Flor tomou no fim?

Nada de spoilers, mas vale ler.

4/5

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