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Ignorance

Ler Kundera antes de ir à República Checa.


O terceiro livro que leio do autor, Ignorance é uma breve reflexão nos seus temas habituais: relações interpessoais e amor, num clima fortemente politizado. Possivelmente a leitura perfeita dias antes de ir a Praga: vemos aqui como o povo checo lidou com a Primavera de Praga, a invasão russa, e como é voltar, 20 anos mais tarde, a um país onde se sente que as suas vidas passadas não existem mais. Temos a ideia base de "nostalgia", e as histórias de dois emigrantes, Irena e Josef, que regressam à sua terra natal quando o regime que os levara a sair 20 anos antes colapsa, entrelaçadas com a Odisseia, de Homero. Também Odisseus (ou Ulisses) regressa a Ítaca, onde supostamente pertence, vinte anos depois; mas, ao regressar, a sua vida passada à deriva será relevante? Como deve ele conciliar as suas duas vivências?

For twenty years he had thought about nothing but his return. But once he was back, he was amazed to realize that his life, the very essence of his life, its center, its treasure, lay outside Ithaca, in the twenty years of his wanderings. And this treasure he had lost, and could retrieve only by talking about it. (...) But in Ithaca he was not a stranger, he was one of their own, so it never occurred to anyone to say, "Tell us!"

Início dos anos 90, logo após a queda do Comunismo na Europa: Ignorance é como que uma versão moderna da Odisseia, focando-se em dois emigrantes que se viram forçados a sair da sua Checoslováquia nativa durante o atribulado ano de 1968. Tinham-se encontrado uma vez, num bar, anos antes, quando eram jovens; e ao regressar à República Checa, mais de 20 anos depois, voltam a encontrar-se, por acaso. 

E encontram também as pessoas do seu passado, sentindo-se como Odisseus (Ulisses), como se tudo estivesse diferente, porém idêntico: estão de volta a um sítio que já não lhes é familiar, que já não é a sua casa, para pessoas que não compreendem aquilo por que eles passaram. 

Tanto Irena como Josef regressam para descobrir que as suas vidas fora daquela que já não é a sua terra não interessam àqueles que deixaram para trás - e nenhum deles se surpreende por não ser o estereótipo de emigrante que todos esperam que eles sejam, pois as suas vidas são, irremediavelmente, nos locais onde se estabeleceram. As dificuldades que Irena passou em Paris são a sua casa; para Josef, casa é onde se encontra a sua esposa falecida, na Dinamarca.

"It was a very strange conversation: I'd forgotten who they had been; they weren't interested in who I'd become. Can you believe that not one person here has ever asked me a single question about my life abroad? Not one single question! Never! I keep having the sense that they want to amputate twenty years of my life from me. Really, it does feel like an amputation. I feel shortened, diminished, like a dwarf."

Ignorance é sobre essa impossibilidade de regressar. Porque a ignorância se alia à nostalgia, e, ao partirem, Irena e Josef deixaram de ser as pessoas de quem os amigos se lembravam, e é como se tivessem morrido para a família. As memórias alteram-se, distorcem-se, perdem-se, por vezes por conveniência, seja para aprendermos a viver com aquilo que fizemos, seja por adulterarmos as coisas para que a memória seja mais idealizada. Irena lembra-se de Josef, mas este apenas finge lembrar-se dela.

Possivelmente toda a gente teve alguma relação - amorosa ou não - que terminou de uma forma diferente da desejada, e possivelmente toda a gente nessa situação repetiu na sua cabeça o que aconteceu, para tentar perceber o que poderia ter corrido melhor, o que poderia ter acontecido se as coisas tivessem corrido de maneira diferente; e é esse tema que é escrito de forma maravilhosa neste livro. Todos nos lembramos das coisas de maneira diferente, e não é garantido que o nosso impacto na vida dos outros vá realmente ser memorável. Embora desanimador, é uma realidade - e Kundera sabe escrever sobre isso.

And there lies the horror: the past we remember is devoid of time. Impossible to reexperience a love the way we reread a book or resee a film.

Ou talvez o regresso não seja impossível, mas apenas difícil. Porque embora algumas coisas mudem, outras permanecem iguais, e é impossível prever ou saber o que esperar - entre climas políticos e relações complexas - e o regresso deixa-os com mais questões ainda.

Não há uma única personagem com a capacidade de ouvir os outros - tanto Irena como Josef são egoístas e até mesmo cruéis, magoando constantemente quem os rodeia. Há lacunas na percepção uns dos outros, sendo esta mais uma forma de distância. E nunca li uma personagem de Kundera que estivesse feliz. 

Ignorance é também um ensaio sobre nostalgia e o desejo de regressar, seja a sítios, seja a pessoas ou situações. É interessante notar que foi escrito cerca de 25 anos após o próprio autor ter emigrado para a França, sem nunca ter regressado à República Checa. Serão estes sentimentos que ele expressa no livro aqueles que ele julga experimentar nessa ocasião? Serão estas as reflexões de Kundera sobre um potencial regresso?

Gostei muito do início, com algumas divagações linguísticas e das diferenças de palavras entre várias culturas, que fala de "saudades" em várias línguas, do português ao checo.

The Greek word for "return" is nostos. Algos means "suffering." So nostalgia is the suffering caused by an unappeased yearning to return.

Entre as explorações de nostalgia, memórias e regressos, o livro deixou-me algo insatisfeita, por parecer de certa forma inacabado, não parecendo uma história completa, mas um pequeno retrato que dá vontade de saber mais sobre as personagens.

4/5

Podem comprar esta edição aqui, ou em português aqui.

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