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Little Women & Good Wives

Com a companhia da Daniela e da Marta, dediquei-me finalmente à releitura de um clássico da minha infância.


Li As Mulherzinhas uma boa meia dúzia de vezes quando tinha 10, 11 anos. Na altura, relia muito - até os meus 17 anos reli muito. Há algum tempo tinha comprado esta edição, em inglês, com vontade de reler a obra, no seu original, em adulta, para ver o que poderia ter perdido.

Lembro-me que na altura gostava muito do livro (e cheguei a ver um anime de adaptação!), excepto duas coisas: a parte do Pilgrim's Progress e a parte do Clube Pickwick. É engraçado serem precisamente duas referências literárias que me tenham marcado como chatas na obra, ao longo de tantos anos: isto significa que nunca vou ler John Bunyan e que o Pickwick Papers está fora da minha lista de Dickens lidos e a ler. Possivelmente estou a perder bastante; sou capaz de ceder ao Dickens um dia.

Little Women tem uma história de publicação particularmente original: foi escrito por encomenda por uma editora. Louisa May Alcott era a segunda de quatro irmãs, filhas de um pai que adorava ler The Pilgrim's Progress em voz alta, e que tentava vender a sua escrita para editoras, com pouco sucesso. Em 1867, um editor pediu-lhe para escrever algo para raparigas, e Louisa não estava interessada - mas persistiu. Nos seus diários (fonte), escreve que a tarefa não lhe agrada, e que ela nunca gostara de raparigas, nor knew many, except my sisters; but our queer plays and experiences may prove interesting though I doubt it. O material da obra é, portanto, semi-autobiográfico, retirado das memórias de infância de Louisa. E Louisa é, obviamente, Jo, a rapariga sem receios, que quer escrever, que quer fazer coisas novas e escapar ao corpete vitoriano que aprisionava as mulheres.

O livro, publicado em 1868, foi um best-seller instantâneo, não obstante as dúvidas da autora; e continua a ser um dos livros mais populares e lidos de sempre. No mesmo ano, saía a sequela, Good Wives, que é comummente publicado no mesmo volume, como se fossem um só livro em duas partes. Possivelmente o seu sucesso assenta exactamente no facto de ser um livro simples, directo e real, que retrata o dia-a-dia de quatro raparigas: Meg, Jo, Beth e Amy. Com o pai ausente na guerra civil, têm de crescer e tornar-se mais independentes. Note-se, por exemplo, que Meg e Jo trabalham para terem o seu próprio sustento.

Tendo em conta que em Portugal o livro é publicado em volumes separados, terei cuidado em não revelar demasiado da narrativa.

A edição que acompanhou uma infância

Portanto, Jo, a segunda irmã mais velha (reparemos, já agora, na idade das irmãs no início do livro: Meg, 16; Jo, 15; Beth, 13; Amy, 12. Que aconteceu entre a Jo e a Beth? Um abraço à mãe March), é de certa forma a heroína do livro: embora destaque seja dado às quatro irmãs, é Jo que se destaca. Escreve, orgulha-se disso, lucra com a sua escrita, e à data em que o livro foi publicado isto era um feito particularmente grande para uma mulher. Vemos também como a família luta com problemas financeiros (problemas comparados com os de uma família alemã, consideravelmente mais pobre), com o problema emocional por Mr. March estar longe na guerra, problemas que não deixam de ser actuais. Vemos a amizade entre Jo e Laurie, entre um rapaz e uma rapariga: amizade platónica, com o seu quê de complicado, entre pessoas de géneros diferentes, algo que não era comum na altura.

O livro é como se fosse uma série de vinhetas sobre as irmãs March, combinadas numa narrativa maior. As irmãs têm personalidades particularmente distintas, mas são muito, muito próximas, e partilham alegrias e sofrimentos. Cada um dos capítulos acaba por ter uma visão moral (e cristã) um bocadinho forte, o que pode retirar algum prazer da leitura, com muita luta e sacrifício pelo meio; mas, embora as raparigas sejam boas pessoas, repletas de virtudes, não são santas. Têm falhas, e são reais. Mesmo Beth, que é demasiado boa para ser verdade, carrega consigo uma mensagem: é a sua bondade que fica, que causa um impacto nos que a rodeiam.

There are many Beths in the world, shy and quiet, sitting in corners till needed, and living for others so cheerfully that no one sees the sacrifices till the little cricket on the hearth stops chirping, and the sweet, sunshiny presence vanishes, leaving silence and shadow behind.

Aliás, a própria Beth, sempre altruísta, tem uma cena que me custa: as irmãs estão, geralmente, atarefadas, cheias de tarefas, estudos, caridade e o seu trabalho pago (no caso das duas mais velhas), e decidem tirar um dia de descanso; a mãe delas decide não fazer nada, e deixá-las ver como a casa fica se toda a gente decidir descansar. No dia seguinte, Beth vai ter com o seu canário: dead in the cage with his little claws pathetically extended, as if imploring the food for want of which he had died. A mãe podia tê-lo alimentado, mas decidiu deixá-lo morrer para ensinar uma lição à filha. Que raio de moral é esta?!

Há um capítulo muito bonito no qual as personagens falam dos seus "castelos no céu", dos seus sonhos mais altos. Falam, entre si, daquilo que sonham, se acham que é alcançável, o que farão para o conseguir.

I've got the key to my castle in the air, but whether I can unlock the door remains to be seen.

Sabemos assim as aspirações e ambições de cada uma das irmãs, mas também do vizinho e amigo Laurie, o que nos impele a ler mais - e a continuar para Good Wives de modo a descobrir se conseguem aquilo que mais desejavam.

Tentando não pegar demasiado na história de Good Wives, vou focar na primeira parte do livro; e vou focar na Meg. A Meg é possivelmente a irmã que menos se destaca: não é vaidosa e egoísta como a Amy, não é demasiado boazinha como a Beth, não tem a personalidade da Jo. Segue as regras todas, mas tem um problema: gostava de ter coisas bonitas, como as amigas mais ricas têm. A sua beleza e vaidade simples tornam-na atraente no livro, mas quiçá aborrecida ao leitor. A masculinidade da Jo é muito mais atraente; Meg é sempre mulher. Jo repete o quanto adora a irmã, mas não vemos grandes motivos para a adorar. Meg ouve a mãe, e as coisas acontecem às outras, às meninas que não ouvem a mãe - que não seguem as regras, as morais. Meg tem uma não-história, no fundo.

O (primeiro) livro acaba, aliás, com aquilo a que Jo chama de submissão da Meg ao pedido de casamento de John Brooke. Meg aceita o pedido, mais do que por submissão, por rebeldia: porque a tia diz que não lhe deixa dinheiro nenhum se ela aceitar. Mas a rebeldia que é tão atraente em Jo, para tantos leitores, não transparece da mesma maneira. Porque Meg é uma mulherzinha - Meg é convencional e foi preparada a vida toda para esse momento, para ser a mulher bem vestida e agradável que agrada aos homens. No capítulo Meg Goes to Vanity Fair, Meg vai a uma festa com as suas amigas ricas e da moda, que decidem emprestar-lhe um vestido novo, mais bonito e da moda do que os que ela tinha podido levar consigo na viagem. Todas lhe dizem que está lindíssima, no seu vestido so tight she could hardly breathe, e sente que finalmente se vai divertir. 

Mas quem se diverte, às custas dela, são as supostas amigas, que convidam Laurie por erradamente assumirem que Meg estaria interessada; Laurie diz-lhe que está desiludido com ela, com o seu aspecto artificial, e Meg ouve comentários vários no mesmo sentido ao longo da noite. E aprende que ter prazer em se tornar bonita é vergonhoso.

I wish I’d been sensible and worn my own things, then I should not have disgusted other people, or felt so uncomfortable or ashamed myself.

Pobre Meg.

O que custa no segundo livro é ver que as irmãs March desistem dos seus sonhos e castelos para serem, simplesmente, boas. Quiçá porque as possibilidades das jovens raparigas se fecham sobre elas quando elas se tornam mulheres. Amy, a irmã que queima o manuscrito do livro de Jo, o seu trabalho de anos no qual tinha imenso orgulho, tem aparentemente o verdadeiro final feliz. Talvez porque Amy é, das quatro, a melhor em criar a ilusão do feminino, do doméstico, do atraente convencional. A mãe dela sente que ela devia tentar melhorar a sua personalidade, em vez do seu nariz, no qual metia uma mola da roupa antes de dormir, numa tentativa frustrada de o alterar, nos dias antes das cirurgias plásticas:

If anybody had asked Amy what the greatest trial of her life was, she would have answered at once, "my nose". When she was a baby, Jo had accidentally dropped her in the coal-hod, and Amy insisted that the fall had ruined her nose forever. It was not big, nor red, like poor "Petrea's"; it was only rather flat, and all the pinching in the world could not give it an aristocratic point. No one minded it but herself, and it was doing its best to grow, but Amy felt deeply the want of a Grecian nose, and drew whole sheets of handsome ones to console herself.

Mas eu não julgo, né. Mais que isso: revelo que na altura em que li este livro pela primeira vez, tentei o mesmo, mas doía um bocado e não conseguia respirar, portanto desisti passados alguns segundos. Respeito pela persistência.

Jo, a escritora, rebelde, maria-rapaz, que vende o próprio cabelo para angariar dinheiro para o pai doente, vê um professor paternalista criticar o seu trabalho: Jo começara a escrever histórias sensacionalistas pelo dinheiro, e o Professor Bhaer humilha-a, embora o faça por achar que ela consegue fazer melhor. Mas até Jo, que queria casar com Meg para que a irmã nunca se fosse embora, que pretendia ficar solteira e viver do seu trabalho, acaba por casar; novamente, talvez porque fosse a única hipótese que tinha, mas na verdade, Alcott, que, novamente, não queria escrever este livro, cedeu à pressão dos leitores. I didn’t dare to refuse and out of perversity went and made a funny match for her (fonte). E é talvez por isto que o final parece completamente errado.

Claro que se pode parar a leitura antes dos casamentos; em português (e em edições do Reino Unido), os livros são vendidos separadamente, e Little Women termina com o noivado de Meg.

Há referências várias ao Pilgrim's Progress, há uma morte, há casamentos, há um pai ausente na guerra, há Deus e fé quando as personagens sentem essa necessidade. Pode parecer muito, ou muito pesado, para o leitor contemporâneo, mas é interessante ver, à luz da altura em que foi publicado, a forma como a percepção sobre Deus e religião varia de personagem para personagem. No fundo, mesmo esta moral serve para falar de amor, aceitação e resignação - sobre preocupar-se com os outros, não ser egoísta, apreciar a beleza.

A obra considera o papel das mulheres na sociedade, apresentando-nos personagens femininas extremamente diferentes, mas todas elas dignas de admiração: além das irmãs, temos a mãe delas, considerada por todas como modelo a seguir, e mesmo a devota empregada da família. Mesmo as suas interpretações sobre o seu lugar no mundo, e o lugar de uma mulher, são díspares, mostrando maneiras diferentes de se integrarem na sociedade: se Meg queria casar, Beth queria ficar para sempre com os pais e ajudá-los na velhice; Jo queria ser solteira e viver da sua escrita, e também Amy queria viver da sua arte. Claro que o século XIX limita as possibilidades do que uma mulher podia fazer, mas neste livro, particularmente através da influência de Jo, esses limites são empurrados um pouco. O final do livro, num piquenique a celebrar um aniversário da mãe March, mostra como as mulheres podem contribuir não só em casa e na esfera doméstica, mas na arte e na sociedade.

Apesar dos finais menos felizes das quatro irmãs, é interessante ver como elas enfrentam o mundo. E, desta vez, o Pickwick Club e o Pilgrim's Progress não pareceram tão maçudos.

Há duas outras sequelas: Little Men e Jo's Boys.

3,5/5

Podem comprar uma outra edição em inglês aqui, ou em português aqui e aqui.

Comentários

  1. Gostei imenso do teu texto!
    Li, como tu, Mulherzinhas na minha infância e, outra vez como tu, li-o várias vezes.
    Em 2015, numa altura em que tive uma vontade louca de ler todos os livrinhos juvenis que andava na estante/casa da minha mamã, reli-o e gostei muito, mesmo torcendo um bocadinho o nariz a todo o cariz religioso e doméstico do papel da mulher! Desde aí que tenho vontade de ler a sequela, mas agora que sei, através do teu texto, que o lado doméstico ganhou uma preponderância ainda maior, vou deixar essa vontade de lado, pelo menos por enquanto!

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    1. Muito obrigada, Ana :) lá está, o lado religioso e doméstico também me incomodou mais agora que quando tinha uns 10 anos - a minha consciência e leitura desses temas também é, agora, diferente... mas dá para ultrapassar ou contextualizar na altura em que foi escrito, sem dúvida.
      A sequela é bastante "doméstica", sim - a vida da Meg então nem se fala, basicamente fica entregue ao seu casamento. A Beth sempre foi doméstica, as outras duas tentam perseguir os seus sonhos mas acabam na vida conjugal. É um fim meio "triste", confesso...

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  2. Li e vi o filme/série, espectacular :)
    bjs
    https://artes-viagens-sabores.blogspot.pt/

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    1. Que versões, Cininha? Há tantas adaptações! :) beijinhos!

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  3. A foto do livro que te acompanhou na infância é muito boa porque tem tanta história, imagino a Babetes pequena a ler bués o livro :p

    'There are many Beths in the world, shy and quiet, sitting in corners till needed, and living for others so cheerfully that no one sees the sacrifices till the little cricket on the hearth stops chirping, and the sweet, sunshiny presence vanishes, leaving silence and shadow behind.' belíssimo e verdadeiro, só essa citação deu-me vontade de ler o livro

    'A mãe podia tê-lo alimentado, mas decidiu deixá-lo morrer para ensinar uma lição à filha. Que raio de moral é esta?!' cold blooded

    'Mas eu não julgo, né.' bué ghetto :p

    'Mais que isso: revelo que na altura em que li este livro pela primeira vez, tentei o mesmo, mas doía um bocado e não conseguia respirar, portanto desisti passados alguns segundos. Respeito pela persistência.' Ohhh Ba :$ tão fofinha

    Já me tinhas dito o que achaste desta leitura mas por este post o livro parece tão interessante que achei que darias melhor nota por acaso
    Dos melhores post que li independentemente, gostei muito Ba

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    1. Não imaginas :o :$ ou eu espero que não :$

      Hás de ler, é só quereres :p

      Muito! :( achei demasiado extremo, era um passarinho inocente!

      Ghetto? :( oh, como posso eu julgar com este pós-rinoplastia todo? :( e sim, é verdade, meti molas no nariz em nova... o que também me leva a duvidar do adesivo :(

      Oh, o final desilude (o final como em a parte 2, Good Wives) e a moral cristã é pesada, eu acho!

      Obrigada :$ se quiseres o livrinho já sabes :p

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  4. Olá :)
    Não li o teu texto porque ainda não li o livro.
    Tenho imensa vontade de o ler, mas outras leituras se vão metendo pelo meio.
    Penso que a minha versão é a que está completa, por isso só me falta a iniciativa de pegar nele e ler.
    Beijinhos

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    1. É um livro que vale muito a pena :) arranja tempo! Mesmo que só tenhas a primeira parte, vale a leitura (mais que a segunda, na minha opinião...) beijinhos :)

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