Foi através da distribuição online (gratuita, e encorajada) do primeiro volume de Poesia de Resistência Palestiniana, em Novembro de 2023, que me apercebi da Traça Editora.
Sutra do Deserto é um livro de poesia da autoria do editor da Traça, de pseudónimo cobramor, e apresenta-se como "um poema longo composto como uma peça de free jazz sobre a destruição das zonas silvestres, a gentrificação, a uniformização cultural e o apocalipse capitalista".
De facto, sentimos em Sutra do Deserto o ritmo variado, as cadências que denotam a liberdade criativa que cede ao improviso, como no jazz. A musicalidade neste longo poema é forte, assentando em repetições de sons, de tonalidades, aliterações, que ganharia possivelmente muito ao ser lido em voz alta.
o verde frio
do todo-poderoso omnisciente omnipotente
altíssimo capital
santificado o vosso nome
tempos|mortos|moribundos|doentios|patológicos
areais sujos lojas inúteis trabalhos fúteis
incham o abdómen
do ânimo assassinado pelo pensamento domesticado
a subserviência
Só mesmo o jazz teria a capacidade emocional de expressar as preocupações sociais aqui prementes, através da fluidez das palavras, ricas em significado e espontaneidade - a crítica ao modo de vida moderno que destrói muito do que temos de, realmente, mais rico, é forte e sentida.
suplício dos antigos, sacrifício dos deserdados devorados pelos condomínios privados, a relva artificial dos courts, a ideia suicida agrointensiva
e a sede
irmãos e irmãs
essa.inesgotável.sede.
A forma como o texto interage com as ilustrações de Hugo Vieira da Silva cria uma experiência estética única, que muito enriquece a obra.
Demorei muito tempo a ler o livro e a publicar esta opinião - os meus maiores e mais sentidos perdões ao autor -, e recomendo que fiquem atentos ao seu próximo livro, prestes a sair.
4/5
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