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Esteiros

O tema de Junho do #lerosclássicos2021 passava por ler um clássico lusófono.



Este tema é, para mim, um desafio, que veio na mesma altura do desafio que me impus a mim mesma: ler Anna Karenina (não é um desafio; é apenas um livro com muitas páginas). É um desafio porque, apesar do meu grande amor por Jorge Amado e Machado de Assis, não sabia ao certo que leitura conjugar com o russo que tinha em mãos. Escolhi Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, livro curto que habitava as minhas estantes desde 2015 e que tinha em muito boa conta, com urgência renovada de ser lido após a minha conversa com a Catarina.


Para os filhos dos homens que nunca foram meninos escrevi este livro.


A premissa de Esteiros vai, de certo modo, de encontro à de Capitães da Areia, que será sempre um dos meus livros favoritos: segue um grupo de rapazes, todos eles crianças que, por via das circunstâncias (acima das quais, a pobreza), se vêem desprovidos da sua infância. Enquanto que os garotos de Jorge Amado são órfãos, tendo por isso de encontrar família uns nos outros, vivendo num casarão abandonado, os de Soeiro Pereira Gomes - Gaitinhas, Guedelhas, Gineto, Maquineta, Sagui, Coca, Malesso... - têm famílias, que têm de ajudar a sustentar, na sua pobreza, seja por serem muitos, seja por doença de familiares.


Não sabemos, de início, a idade destes rapazes; sabemos, apenas, que abandonaram a escola, que trabalham de sol a sol em trabalhos fisicamente árduos, que vêem na Feira de Setembro o mesmo que os Capitães viam no carrossel. Sabemos que muitos deles têm sonhos, ou que os seus pais até tinham projectos para eles, mas que estes sonhos são meras miragens, sem futuro, uma réstia de esperança à qual se tentam agarrar. Mesmo quando o sonho é apenas comprar um fato novo.


Esteiros, minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama, que só o rio afaga


Publicado em 1941, retrata, em linguagem clara e simples, a vida da comunidade pobre na zona ribeirinha do Tejo, para os lados de Alhandra, denunciando a pobreza que muitos hoje ainda negam ter existido, mas sem ser panfletário ou impor qualquer ideologia (apesar da afiliação partidária do autor). Entre os 8 e os 12 anos, o grupo de rapazes que protagoniza a obra está entregue a si mesmo, trabalhando no verão nos esteiros ou na fábrica, ocupações temporárias que requerem a força física de um adulto, ou, em alternativa, roubando, mendigando...


A injustiça, a miséria, a privação e a exploração são-nos mostradas ao longo de um ano, num livro dividido pelas suas quatro estações: o Outono, onde começa a obra, é quando o trabalho começa a escassear, juntando ao frio as maiores privações. No fim do livro, com o final do Verão, compreendemos que esta forma de vida é cíclica, se repete ano após ano, não se podendo escapar da miséria e da pobreza, pois, abandonando à força os estudos, abandonavam qualquer hipótese de ascensão social (o pai de Gaitinhas, emigrado, queria que ele fosse médico...).


É um relato extremamente importante, mais ainda por retratar uma realidade ainda muito negada: a da pobreza que levava ao trabalho infantil, não regulado, com tratamento escravo, sem possibilidade de fuga, tal a dependência do pouco que oferecia em troca.


5/5


Podem comprar uma nova edição, bem bonita, na wook ou na Bertrand



Comentários

  1. Claro que já não me lembro de nadinha, mas este foi um dos clássicos que li em adolescente, mais ou menos na altura dos Capitães de Areia.
    Para este mês, comecei a ler o Diário de K. Maurício de Raúl Brandão, mas quando percebi que faz parte da Porte do Palhaço, achei que não fazia sentido lê-lo descontextualizado. Como tal, optei por uma coisa mais contemporânea, A Disciplina do Amor da Lygia Fagundes Telles, uma espécie de diário, que estou quase a terminar. Sempre em cima do prazo! :-)
    Paula

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    Respostas
    1. já li tanto a morte do palhaço quanto a disciplina do amor :) e também confesso que, embora tenham sido leituras relativamente recentes, me lembro de pouco de ambos, mas lembro-me de ter gostado mais do da lygia (e, a bem da verdade, tenho opiniões sobre ambos aqui no estaminé!)

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  2. Já tinha ficado curioso com o livro quando ouvi o episódio, agora fiquei ainda mais

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    1. lê-se muito bem, não obstante a edição ser um bocadinho horrorosa e pouco user-friendly! é um retrato muito duro e cru de uma realidade da qual se fala muito pouco...

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