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A relíquia

Ainda não sei o que esperar de Eça.



Teodorico Raposo, o narrador, é um órfão que vai viver com a tia beata e rica, D. Patrocínio, a quem chama de "titi", senhora de idade que usa o seu dinheiro para controlar os que a rodeiam e chama "relaxação" a tudo o que não seja casto e devoto. Teodorico, o "Raposão" é, porém, dado a relaxações, a mulheres, e à ideia de uma vida folgada e sem trabalho. D. Patrocínio patrulha tudo o que se passa na sua casa e tem a chave do quarto do sobrinho. Teodorico pensa que quando a titi morrer será rico. No entanto...

Eu arrisquei outra palavra timida:
- A titi, é verdade, tem-me amizade...
- A titi tem-lhe amizade - atalhou com a boca cheia o magistrado - e você é o seu único parente... Mas a questão é outra, Teodorico. É que você tem um rival.
- Rebento-o! - gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chamas, esmurrando o mármore da mesa.
O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o Dr. Margaride reprovou com severidade a minha violência.
- Essa expressão é imprópria de um cavalheiro, e de um moço comedido. Em geral não se rebenta ninguém... E além disso o seu rival não é outro, Teodorico, senão Nosso Senhor Jesus Cristo!
Nosso Senhor Jesus Cristo? E só compreendi quando o esclarecido jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a titi, ainda no último ano da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e prédios, a irmandade da sua simpatia e a padres da sua devoção.
- Estou perdido! - murmurei.

Teodorico começa a viver de aparências, sendo o mais devoto possível em frente da tia, correndo de igreja em igreja durante o dia e saindo à noite para visitar a amante Adélia com a desculpa de ir ao teatro, luxo que a titi lhe permitia em troco de tamanha beatitude. O início do livro é interessante e cria curiosidade em saber se o hipócrita Teodorico Raposo conseguirá ou não a herança da sua tia.

Adélia arranja novo amante e Teodorico descobre - e aqui, Teodorico quer fugir, esquecer Adélia, e consegue finalmente convencer a sua velha tia a deixá-lo viajar sob o seu patrocínio (...não foi de propósito). Teodorico vai então numa longa viagem a Jerusalém, com a missão de trazer à titi uma relíquia da terra sagrada. Teodorico aproveita para se envolver com uma mulher egípcia, Mary, que lhe oferece num embrulho de papel pardo uma sua camisa de noite, prenda à qual Teodorico chama premonitoriamente de "relíquia" e à qual é muito apegado; e faz amizade com um teólogo alemão, Topsius.

Teodorico chega a Jerusalém e não está interessado nas paisagens nem nos marcos históricos, mas sim nas mulheres, destacando porém as várias "relíquias" que se vendem por toda a parte, palhinhas da cama de Jesus ao nascer, frascos de água sagrada, tábuas alegadamente trabalhadas por José, ou seja, já existia na altura a candonga dos souvenirs e o nosso protagonista compra-os aos montes. É aqui que começa aquilo que me repele enormemente em Eça: as descrições, as descrições, pois há toda uma passagem demasiado longa com uma espécie de viagem no tempo ao momento em que Pôncio Pilatos julga Jesus Cristo, e é horrendo (posteriormente o Bulgakov conseguiu fazer isto bem, e isso não me saía da cabeça, o que pode ter ajudado a fazer de toda a passagem mais insuportável ainda). Isto é ainda mais infeliz porque, embora tendo lido pouco do Eça, os outros livros que li eram mais fortes nas suas análises da sociedade e hipocrisia religiosa, e isto abalou totalmente o tom de comédia que até então dominava o livro de uma maneira muito má.

Teodorico nunca esquece que tem de levar uma relíquia extremamente única e especial à titi, de modo a arrebatar o coração da velha e garantir para si a herança. Topsius convence-o a levar-lhe uma coroa de espinhos e alegar ser a original que Jesus utilizou. Embrulham tal relíquia em papel pardo.

Teodorico descobre que Mary andava com todos e decide livrar-se do embrulho onde levava a sua relíquia pessoal, a camisa de dormir.

Teodorico nunca abre os embrulhos de papel pardo para se assegurar do que vai no quê, embora eu pessoalmente creia que seria de fácil distinção, por se tratarem de uma peça de roupa e um pedaço de árvore. O twist aquando do seu regresso a Lisboa é previsível e visível com muitas páginas de antecedência.

Notório pela sua noticiada viagem a Jerusalém, Teodorico deserdado vive uns tempos enquanto revendedor de quinquilharia religiosa, até ter uma epifania algo infantil na qual descobre ter sido hipócrita a vida toda (tal epifania não lhe disse, no entanto, que era, além de hipócrita, arrogante e ganancioso, sexista e anti-semita).

Teodorico acaba por conseguir uma vida confortável no fim, graças a alguma sorte e muito trabalho - e apesar de ter constatado ser hipócrita, demonstra não ter aprendido nada ao revelar que o seu grande arrependimento na vida é não ter dito à titi que a camisa de noite era de Maria Madalena.

4/5

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