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Rosemary's Baby

A base de um dos meus filmes preferidos (apesar do Polanski - e recuso-me a ver mais filmes dele).


A história é conhecida, portanto não me irei "poupar" nos potenciais spoilers; se não conhecem a história e querem uma surpresa, leiam o livro ou vejam o filme primeiro (ou saibam que eu dei 5* ao livro e passem à frente). Embora o filme seja conhecido enquanto um filme de terror, o livro não o é exactamente - não no sentido mais "directo", digamos. Temos por um lado o suspense, que pode ser a parte mais assustadora de uma história: vamos juntando as peças da história, mas não sabemos o que irá acontecer, se Rosemary irá morrer? Se o bebé iria ter uma reacção tipo Alien e sair de dentro dela? O que iriam fazer com o bebé? É em parte isso que torna a história aterradora.

Noto desde já que o filme é extremamente fiel ao livro, detalhes à parte - e, tal como The Stepford Wives, o livro é muito, muito bom. Mesmo tendo em conta as semelhanças, recomendo a leitura do livro a quem aprecie o filme, porque ler sobre os eventos - a bruxaria e o engano - é potencialmente mais poderoso.

Rosemary, típica dona de casa dos anos 60; o seu marido, Guy Woodhouse, aspirante a actor (cujo break nunca parece chegar) têm a oportunidade de se mudar para o prédio dos seus sonhos, o Bramford, em New York. Quando contam a novidade a Hutch, figura paterna, amigo e mentor de Rosemary, este tenta dissuadi-los, dado que o prédio tem uma história de eventos e residentes algo macabra - desde irmãs que comiam crianças a Adrian Marcato, que terá invocado o Diabo - e será que há espaço para coincidências quando o número de ocorrências é tão elevado? Mas o apartamento é um sonho, Rosemary não será dissuadida, e sonha em viver e ter os seus filhos no histórico edifício.

Os vizinhos, Roman e Minnie Castevet, são intrusivos e estranhos, roçando o absurdo (Rosemary a certa altura comenta com Guy as calças verde-lima que Minnie Castevet veste) mas não parecem extremamente anormais - talvez algo necessitados de companhia, mas os velhotes não são todos assim? Mesmo quando através da parede se ouvem conversas e música de flauta monótona e cânticos indiciadores de seitas? Após um convite para jantar, Guy torna-se próximo do casal, enquanto Rosemary prefere manter alguma distância - e após Guy arranjar estes aparentes substitutos para os seus pais, as coisas começam a acontecer para o casal: Guy arranja papéis incríveis (dado que o seu "rival" fica cego do nada) e deseja finalmente a criança que Rosemary sempre quis ter.

Na sua noite romântica na qual planeiam tentar engravidar, Minnie bate à porta para lhes dar mousse de chocolate, em taças individuais. Rosemary fica bêbeda (será?), desmaia (sem estar 100% inconsciente) e repara que o marido a está a despir. Tem um sonho bizarro no qual julga que algo está a acontecer - e, quando acorda arranhada, percebe que o marido não desperdiçou a baby night, mesmo com ela inconsciente. Rosemary sente-se usada, sente que algo está errado aqui - mas sendo os anos 60, sendo o seu marido, e mesmo que o dito marido tenha feito piadas sobre necrofilia, ele pediu desculpa! Portanto não foi violação, certo?

Semanas mais tarde, Rosemary descobre que está grávida, e vai ao obstetra da sua amiga - mas rapidamente, e entre piadas sobre judeus, os Castevets insistem que ela seja acompanhada pelo seu amigo Dr. Sapirstein, que recomenda que Rosemary beba todos os dias uma bebida de ervas dada pela Minnie Castevet, que não fale com as amigas sobre a sua gravidez porque "todas as gravidezes são diferentes" e que lhe diz que tudo é normal, desde a perda de peso às dores horrendas, passando pelos desejos de comer carne crua.

The pain grew worse, grew so grinding that something shut down in Rosemary – some center of resistance and remembered well-being - and she stopped reacting, stopped mentioning pain to Dr, Sapirstein, stopped referring to pain even in her thoughts. Until now it had been inside her; now she was inside it; pain was the weather around her, was time, was the entire world.

Quando Hutch vê Rosemary, fica horrivelmente preocupado; quando conhece Roman e ouve as várias histórias sobre os vizinhos, decide investigar. Quando marca um encontro urgente com Rosemary para lhe contar qualquer coisa que descobriu, entra num coma misterioso e profundo (tal como a antiga residente da casa onde Rosemary e Guy vivem).

Os meses vão passando, as coisas vão continuando na mesma (com Rosemary cada vez mais isolada dos amigos, da sua vida anterior, sozinha em casa apenas com a companhia dos vizinhos bizarros), até que Hutch morre - mas não sem antes ordenar que um livro sobre bruxaria e a frase "the name is an anagram" sejam entregues a Rosemary.

A narrativa é directa e relativamente simples: Rosemary começa a suspeitar que os seus vizinhos fazem bruxaria e que querem a sua criança para alguma espécie de ritual satânico. Começa a ter dúvidas, começa a pensar em conspirações diferentes e todas elas possíveis. O cheiro forte de uma planta chamada tannis root, velas pretas, as doenças súbitas e misteriosas de várias pessoas, as bebidas nutritivas. Tudo isto acontece um pouco como cenário de fundo, ou nunca é realmente presenciado, sentido; e mesmo a maior cena de "acção" é-nos mostrada como um sonho, Rosemary drogada no ritual em que engravida do Diabo (algo muito mais forte e maligno que a simples entrega da criança para rituais).

E no meio de tantas dúvidas e poucas pistas reais, surge uma outra questão: estará Rosemary simplesmente louca? Grávida, isolada, num cenário de confusão, sentindo-se aprisionada num mundo em que ninguém parece acreditar nela, onde não pode confiar em ninguém. Tal como em The Stepford Wives, e citando uma das minhas séries preferidas, terror starts at home.

Rosemary é uma personagem fácil de simpatizar, é sensata e questiona as coisas, apesar de se vergar aos desejos do marido com demasiada facilidade - mas não eram assim os anos 60? E aqui entra o outro ponto de terror da história, aquele que talvez seja o principal, e o mais fácil de compreender mesmo nos dias de hoje - aquilo que sim, pode acontecer no mundo "real" - Rosemary é pouco mais que um objecto. E é isso que, para mim, torna a história assustadora, e não toda a conversa do diabo e das bruxarias.

Rosemary não tem controlo sobre o seu corpo, sobre as suas decisões, sobre os seus pensamentos, porque é controlada primeiro pelo marido, depois pelos vizinhos e finalmente pelo médico (que também não foi ela que escolheu!). Não pode falar com as amigas, é obrigada a beber bebidas horríveis que nem sabe bem o que têm, não pode pesquisar sobre a sua gravidez, tem de aceitar tudo o que lhe dizem. O marido entrega-a não só aos vizinhos, mas ao diabo, em troca de uma carreira de sucesso. É frequentemente traída por todos, por toda a gente que devia ter os interesses dela em mente, inclusive pelo médico que tinha realmente escolhido e que a entrega de volta a Guy e a Sapirstein. E no final, dizem-lhe que o filho dela morreu. Claro que é frustrante quando ela simplesmente cede aos desejos do marido; mas será culpa dela? Claro que não.

Portanto, Rosemary não só não pode confiar em ninguém, como não pode tomar decisões nem estar informada sobre a vida dela. E isto acontece hoje, todos os dias, um pouco por todo o mundo. Há mais nestas páginas do que o imediatamente óbvio; claro que a seita, que o diabo e tudo isso são assustadores (até porque, como diz o livro que Hutch deixa a Rosemary, nós podemos não acreditar, mas eles acreditam), mas isto não é ainda mais? O livro funciona exactamente por isto, e não pelas bruxarias. The Handmaid's Tale é um livro brilhante, e estou ansiosa pela anunciada adaptação para série; mas além de Margaret Atwood, temos Ira Levin.

E temos muito trabalho pela frente.

E é por isto que apesar de o Polanski ser uma das pessoas mais desprezíveis possível, este é um dos meus filmes preferidos.

5/5

Podem comprar uma outra edição aqui, ou em português aqui.

Comentários

  1. Muito boa review, e alta referência a sete palmos de terra :p

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    1. se dá para referir sete palmos de terra, eu não perco a oportunidade :p

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