Alguém ainda se lembra que este clássico foi debatido em Janeiro no Clube dos Clássicos Vivos?
É verdade - já li este livro há mais de dois meses, mas têm sido uns... cinco? meses muito complicados.
Torre mais velha que o reino, Torre de Santa Irenéia!
Gonçalo "Gonçalinho" Ramires, protagonista desta obra, é o fidalgo da Torre de Santa Ireneia, o jovem, provinciano herdeiro da mais nobre e antiga família de Portugal, que antecede mesmo a formação do reino: os Ramires. Gonçalinho, como lhe chama quem o conhece - diminuindo, de certa forma, o grande fidalgo - é fútil, medroso, inseguro e inconstante; e acompanhamos cerca de um ano da sua vida, os seus 29 anos, ao longo da narrativa.
Gonçalo, consciente das suas limitações, quer brilhar - não quer ser apenas um proprietário que vive à custa das suas rendas, quer "servir o reino", como a sua posição lhe exige, ser deputado, alcançar voos mais altos. É neste sentido que Gonçalinho aceita o convite de um colega de faculdade para escrever um livro, um conto, no qual enalteça e reconte os feitos históricos da sua família, o qual intitula "A Torre de D. Ramires". Com a fama - da família, e a sua própria -, Gonçalo espera que a opinião pública se lhe torne favorável, e retribua em dividendos políticos.
A narrativa, assim, toma dois planos: a vida de Gonçalinho, pequena, pouco importante, mundana, no seio de uma nobreza decadente; e a sua narrativa sobre Tructesindo, um seu antepassado, cuja força Gonçalinho almeja, entre tradição, batalhas e bravura. O paralelismo entre as narrativas funciona; a escrita muda, de uma para a outra, e é notório que o escrito de Gonçalo é maçudo, aborrecido, pesado e histórico. Isto parece-me propositado; e é possível ler a narrativa, não compreender algumas das palavras utilizadas, e seguir em frente. Suponho que fosse alguma forma de sátira para com romances históricos da época.
Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho da sua alta espada, os olhos fundos avidamente cravados na tenebrosa lagoa que, com morte tão fera e tão suja, vingaria seu filho...
Aqui, morre Sanches Lucena, deputado pela vila, e aqui surge a oportunidade de Gonçalo: no entanto, para conseguir o seu lugar na vida pública, tem de reatar amizade com André Cavaleiro, amigo de infância que injuriara Gracinha Ramires (irmã de Gonçalo) com juras de amor falsas. Muda de partido - outrora, não passava de um opositor inofensivo e apolítico. O seu plano alternativo é casar com a viúva Lucena, de modo a ganhar posição social e também económica. Vários episódios humilhantes se sucedem; Gonçalinho não parece estar à altura dos seus antepassados heróicos, na sua incoerência, tosquice, pequenas mentiras de índole infantil - julgo-o mais imaturo e inexperiente que mentiroso, falso ou mau. É um adolescente com quase 30 anos, cuja vida é cuidada pelos empregados da família, Bento e Rosa, como se fosse uma criança; acredita na influência que a sua família já há muito perdera; é a imagem da nulidade de um "Senhor Doutor", que é, ainda assim, tratado de forma ridícula e infantil pelos que o rodeiam.
Não obstante, a expectativa social é elevada; a história familiar pesa sobre os ombros de Gonçalo, entre o poema histórico do tio e a pesquisa que faz para ter bases para a escrita de uma novela que culmina numa batalha, entre Tructesindo Ramires e o bastardo Lopo de Baião, digna de um episódio de Game of Thrones. E é ao lado de Tructesindo que Gonçalinho parece mais e mais fraco; a sua vida é repleta de facilidades, de aborrecimentos tolos, de cobardia, de desculpas e justificações.
Um tiro atroou o terreiro! E Gonçalo, com um salto no selim, avistou o rapazote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas já hesitando aterrado.
- Ah, cão!
Lançou a égua, com o chicote alto: o rapaz, espavorido, corria lentamente através do terreiro, para saltar o valado, escapar para as várzeas ceifadas!
- Ah cão, ah cão! - berrava Gonçalo.
Gonçalo consegue, a mais ou menos custo, o seu lugar de deputado, aquilo que julgava ser seu direito; mas Vila Clara é uma terra pequena, as pessoas são mesquinhas, bisbilhoteiras. Provincianas. Após um confronto com um arruaceiro local, após ter sacrificado a sua honra, a da sua irmã, a sua independência, Gonçalo muda e torna-se no herdeiro dos Ramires que sempre sonhara ser. Porque Gonçalo quer acreditar que é um cavaleiro moderno, uma imagem de bravura que leva consigo a honra do nome da sua família. E, já conhecido em Lisboa, amadurecido e adulto, demonstra ser completamente diferente da imagem de presunção que era esperada dele, e decide partir para África, em busca de uma qualquer liberdade - cumprindo o sonho português de expansão colonial em África.
Porque Eça estabelece um paralelismo entre Gonçalinho e Portugal ao longo do livro, confirmando-o posteriormente, nos últimos parágrafos do mesmo. E Eça não leva o seu país a sério, porque não se leva a si mesmo a sério, mas mantém a esperança, ténue, de que o país se endireite, que a inspiração das glórias passadas pode trazer glórias presentes ou futuras - que é precisamente o que odeio na literatura portuguesa, em Fernando Pessoa, em todas as ideias de quinto império, e que é horrivelmente actual.
Santo Deus! De novo o murmúrio recomeçara, mais apressado, mais turbado. Alguém suplicava, balbuciava: - “Não, não, que loucura!” - Alguém urgia, impaciente e ardente: - “Sim, meu amor! sim, meu amor!” E a ambos os reconheceu - tão claramente como se a persiana se erguesse e por ela entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era Gracinha! Era o Cavaleiro!
E, ainda assim, é capaz de ter sido o livro que mais gostei de Eça (embora não tenha lido muita da sua obra, confesso): é um livro profundamente político, mas com pouco de política no seu enredo. Gonçalo não é Carlos da Maia, não é o Padre Amaro, não é um falhado, destroçado, trágico, criminoso. É humano. E é um livro com um enredo banal, quase nulo, com muito pouco a acontecer em termos de acção, porque é o crescimento de Gonçalo que interessa, no quadro de um Portugal em declínio (especialmente face ao Reino Unido, potência imperial cujo poder no final do século XIX era imenso; basta pensar que o Ultimatum se deu dez anos antes da publicação deste livro).
4/5
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Epa, não consegui gostar do livro... Até gostei do outro que li também para o Clube, O Crime do Padre Amaro :)
ResponderEliminarHaha, não julgo! Também não adoro Eça... do Crime do Padre Amaro gostei também, do restante que li dele não tanto! Mas a este consegui achar piada, embora o final fosse fraquinho :)
EliminarEu lembro-me :p
ResponderEliminar'que culmina numa batalha, entre Tructesindo Ramires e o bastardo Lopo de Baião, digna de um episódio de Game of Thrones' ahah sure :p
'é precisamente o que odeio na literatura portuguesa, em Fernando Pessoa, em todas as ideias de quinto império, e que é horrivelmente actual' percebo Ba
'E, ainda assim, é capaz de ter sido o livro que mais gostei de Eça' acredito, até porque ainda não leste O Mistério da Estrada de Sintra :pp
Gostei da review, gostava de ler o livro e mais do Eça em geral :p
Juro! :o envolve sanguesugas e afogamentos!!!
EliminarÉ aquele saudosismo de grandiosidade e coisas afins que me irrita um pouco na literatura portuguesa :/ e que continua actual sim, sinto que há uma nostalgia escondida bizarra que vem das aulas de história do 6º ano e que faz com que pessoas se revoltem com a ideia de monumentos acerca da escravatura...
É verdade :o faltam-me principalmente esse, do qual tanto gostaste, e o Primo Basílio, que tenho praqui e é outro dos "grandes" livros dele :p
Irás ler :D que gostavas de ler dele? :p
Tanta coisa :p O Crime do Padre Amaro principalmente mas também A Tragédia da Rua das Flores, O Primo Basílio, O Mandarim, A Relíquia e A Ilustre Casa de Ramires! Mas também ler a sério A Cidade e as Serras e Os Maias :p e tu? Empresto-te O Mistério da Estrada de Sintra quando quiseres :D
EliminarNão tenho a Tragédia nem O Mandarim :$$$ os outros posso emprestar, menos a Cidade e as Serras que não tenho :p lembra-te que o livro do Crime do Padre Amaro não tem a Soraia Chaves! :$
EliminarE eu tenho uma edição meio manhosa do Mistério da Estrada de Sintra, lembras-te? :o que descobri no ano passado depois de teres lido :$ mas se quiseres emprestar :D
Ahaha eu sei que o livro não tem a Soraia Chaves :p
EliminarComo quiseres Ba :p mas sim lembro-me disso xD
Obrigado :p
Foi o último livro de Eça que li talvez haja perto de um ano. adorei, mas gosto muito de Eça
ResponderEliminarEu sinto que a minha "relação" com Eça é um pouco inconstante. Quais os favoritos do Carlos?
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