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Lápides Partidas

A minha vontade de ler Aquilino Ribeiro já vinha de há muito.


Foi, como já disse neste blog, o autor que me "faltou" comprar na Feira do Livro de Lisboa de 2017; foi o autor que um grande amigo meu me disse, no seu anual postal de Natal, se ter destacado dentro das suas (poucas) leituras de 2017; e foi com esta reedição que me rendi e me estreei.

Este não era um título que eu conhecesse. Tinha mais em mente aquele dos lobos ou a casa de Romarigães (que, descobri por acaso, é em Paredes de Coura, terra onde ponderei regressar este ano). Também tenho curiosidade com o da raposa. E o dos faunos.

Queria ler Aquilino Ribeiro, resumindo.

Começo por dizer que Aquilino Ribeiro não é para qualquer um. A sua prosa é densa, muitas das palavras caíram em desuso; a aplicação Priberam instalada no telemóvel torna-se mais útil do que nunca. Mas, passada a resistência inicial, entra-se facilmente no ritmo e é um deleite ler Aquilino Ribeiro.

Segundo vim mais tarde a perceber, o protagonista de Lápides Partidas aparecera já n'A Via Sinuosa; no entanto, e fora quiçá algum enquadramento, é perfeitamente possível ler este livro, apenas, solto. Libório Barradas foge da sociedade de Lamego e vem para Lisboa. Parcialmente autobiográfico (também Aquilino veio da Beira Alta), este livro mistura ficção com realidade, retratando o período revolucionário de 1908 que levaria posteriormente à implantação da República em Portugal.

Aquilino Ribeiro retrata uma Lisboa de início de século XX, provinciana não só pela quantidade de gente vinda da província, a Lisboa de João Franco e dos anarquistas e da Carbonária. Vemos esta cidade pelos olhos de Libório Barradas, a cidade de conspiração política, do golpe do elevador da Biblioteca de Janeiro de 1908, a Lisboa do regicídio - Manuel Buíça e Alfredo Costa disfarçados de Roliça e Manfredo Bemposta.

Não deu ares de se espantar com a minha aparição, como se fossem favas contadas, o impagável e fero amigo do liceu. Pela greta da porta, em ceroulas e chinelos de tapete, disse-me para o esperar em baixo, no "galego", e rodou, tornando a dar a volta à chave. Ao tempo que desandava, ouvi tossicar uma garganta de mulher, e fiquei a admirar o sibaritismo deste felizardo e a invejar-lhe a sorte de cão.

Muitas das personagens do livro são presas, perseguidas, mas também elas perseguem o seu ideal; não interessa que todos sejam presos após o golpe falhado do elevador da Biblioteca, interessa-nos que Libório decidiu vir para Lisboa nesta altura; que vive num quarto que lhe arrenda uma senhora espanhola que mata palomitas; que Libório quer ser escritor, viver da literatura, mete-se em trabalhos de tradução sem futuro, está perdido, como tanta gente; e que Libório, que tem explosivos no quarto, é uma personagem central e activa em acontecimentos políticos vários no decisivo ano de 1908, e que as descrições de todos os episódios deste livro, sejam políticos, sejam românticos, são sensoriais e vívidos.

Ler este livro é passear pelo Rossio, pelo Príncipe Real, pela Baixa de Lisboa.

- Negue, senhor Liberato, negue, se é capaz, que a criatura se meteu com o senhor na cama?
- Pois meteu - confessei, com o maior descaro.
- Mas afirmou que a criatura chegara, sentara-se nesta cadeira, deu o recado e despedira-se como veio? - invectivou Martinha com voz irada em que marulhava uma amaríssima decepção.
- Sim, afirmei - retorqui sorrindo - Chegou, sentou-se na cadeira... e o recado deu-o aqui na cama.

É um livro de amores, paixões à primeira vista em espectáculos ao vivo, prostitutas, pombos, homicídios. É um livro de Lisboa, mas também da Beira Alta.

E é interessante pensar em Aquilino Ribeiro, não só enquanto escritor mas na sua vertente de homem político, estabelecer o paralelo entre Libório e o autor, preso em 1907 no seguimento de uma explosão no quarto que arrendava em Lisboa, fugido da prisão, vivendo na clandestinidade.

Como Patarroxa olhasse para mim com ar de quem espera uma resposta atilada e eu a não desse, logo ele tornou benevolamente:
- Compreendo: sente-se empurrado pelas duas mãos. É o que sucede na maior parte dos casos. Sim, por um lado sorri ver o nome em letra redonda, ser popular, andar na berra; por outro há que ganhar a vida. Andiamo. O curioso - e peço-lhe que não veja no que vou dizer alusão à sua pessoa - é que não há ninguém que se não julgue habilitado a manejar a pena. Porquê? Tenho-me perguntado muitas vezes. Provavelmente devido ao pouco peso do objecto e ainda à passividade do papel em branco. Não será isso? Admito também que se escrevam cartas à prima, cartas que a deixem babadinha de todo, e que resulte daí, para quem as escreve, bem entendido, não parecer milagre nenhum compor a Arte de Amar, de Ovídio.


A ler mais.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Ainda me lembro quando estavas em Paris e eu a receber os teus livrinhos aqui em Lisboa, esse foi um deles que guardei com tanto carinho para leres em primeira mão :p

    'e que Libório, que tem explosivos no quarto' como é que os conseguiu?

    É um livro de pombos? :o

    'é que não há ninguém que se não julgue habilitado a manejar a pena. Porquê? Tenho-me perguntado muitas vezes. Provavelmente devido ao pouco peso do objecto e ainda à passividade do papel em branco. Não será isso?' muito bom

    Gostei :p tenho alguma curiosidade em ler o autor também mas não é uma prioridade :p

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    1. É verdade, este foi um dos que acolheste com muito amor e carinho, obrigada :$

      Ele tinha explosivos no quarto porque os tinha levado com ele, ora :o

      Não é de pombos, mas mete pombos! Não fosse um livro passado em Lisboa :$

      Sim! Achei muito bom também, tanta gente que acha que nasceu para ser escritor, é uma excelente crítica, super actual - quiçá mais actual ainda, agora!

      Noted :p

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  2. Pois já passaram mais de 2 anos desde que li Aquilino "Volfrâmio", bem me lembro as vezes que tive de consultar o dicionário, também o priberam... não são só arcaismos, mas também regionalismos que ele levantou no terreno e introduziu nos seus livros e às vezes nem consta dos dicionários.
    Gostei do livro que li, porque também queria perceber qual fora a realidade em torno destes catadores de minério para tentarem enriquecer à pressa à custa da guerra e do armamento e deu-me uma grande imagem do que foi essa época.

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    1. Também tenho curiosidade quanto a esse, Carlos! Interessante saber do que se trata. Fiquei a querer ler mais do autor.
      Houve de facto muito vocábulo que não encontrei no priberam, nem na net - tive de ir buscar o sentido pela frase, não sendo muitas vezes fácil. Sendo de origem beirã, ri-me de alguns que me eram conhecidos, mas outras palavras passaram-me completamente ao lado. Desconhecia, no entanto, essa faceta da sua linguagem.

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