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Pinocchio

A história da marioneta mais conhecida do mundo.


Mas começo com a ressalva: este não é o Pinocchio da Disney. Claro que o filme foi baseado neste livro - Pinocchio é uma criação de Carlo Collodi -, mas o original envolve violência, desastres, tentativas de homicídio, prisão, roubos... e uma marioneta muito ingrata e mentirosa, que é facílimo odiar. Por que é que há tantos clássicos infantis violentos? Sim, tal como tantas outras histórias infantis clássicas e memoráveis, Pinocchio tem uma aura de violência e morte presente ao longo de todo o livro. É constante.

Neste livro, vemos Pinocchio, o boneco de madeira, ganhar vida a partir do tronco que Gepetto, seu pai, molda - e Pinocchio cede a cada impulso egoísta que qualquer criança no mundo algum dia teve. O seu pai passa fome e frio para que ele coma e estude - mas ele desiste de estudar à primeira ilusão de dinheiro, e todas as suas decisões trazem mágoa a Gepetto. Mais tarde, a Fada Azul (primeiro uma menina, depois uma mulher, depois uma cabra - inexplicável e bizarro, confesso) torna-se numa figura materna, a quem Pinocchio quer agradar, mas não consegue, porque é impulsivo. E também os seus actos têm consequências nefastas para o próprio Pinocchio - desde pés queimados a frigideiras, à clássica cena em que é transformado num burro.

Lies, my dear boy, are found out immediately, because they are of two sorts. There are lies that have short legs, and lies that have long noses. Your lie, as it happens, is one of those that have a long nose.

O grande problema de Pinocchio é que ele não aprende. Mente, engana, rouba, é preguiçoso e egoísta, mas comete os mesmos erros repetidamente, não obstante as suas promessas de se tornar num bom rapaz (sempre quando está em crise, claro). Volta sempre ao mesmo, mal as coisas lhe começam a correr bem... e acha-se sempre um desgraçado quando alguém o rouba, ou lhe mente, ou o engana.

Woe to those who lead slothful lives. Sloth is a dreadful illness and must be cured at once, in childhood. If not, when we are old it can never be cured.

E a cada cena que passa, cada "castigo", cada consequência é mais real que a anterior. Há uma componente moralista muito forte neste livro. E apesar de o narrador (terceira pessoa) nos mostrar que o perigo e a infelicidade são as consequências reais do mau comportamento (eu pelo menos não quero ser linchada por um gato e uma raposa), a verdade é que as aventuras de Pinocchio são entusiasmantes. Collodi criou um mundo sem regras - não há explicações nem motivos para muitas das coisas (por exemplo, animais que falam, várias marionetas falantes, possibilidades de transformação em burro, as transmutações várias da fada). E Pinocchio, no meio de tudo isso, não compreende as regras a que deve obedecer.

Uma questão que aqui se levanta, não obstante os comportamentos de Pinocchio serem realmente horríveis, é a dogmatização e "domesticação" pelas quais temos de passar - as liberdades que temos de resignar - para sermos humanos.

O livro tem o seu quê de estranho, não escondo - estranho e escuro, com todas as desgraças, com todos os encontros com a morte e com o grotesco.

The Cat, who was suffering from indigestion and feeling seriously indisposed, could only eat thirty-five mullet with tomato sauce, and four portions of tripe with Parmesan cheese; and because she thought the tripe was not seasoned enough, she asked three times for the butter and grated cheese!

É também difícil definir Pinocchio - o livro original acaba num ponto em que é previsível que Pinocchio fosse morrer; no entanto, Collodi escreveu uma segunda parte (agora, ambas são o livro completo) na qual Pinocchio tem uma segunda chance de encontrar redenção, dada a popularidade do primeiro livro. Claro que em livros assim não há grande problema em ressuscitar uma personagem - especialmente quando se trata de uma marioneta - mas há muitas contradições. Pinocchio tem compaixão, mas ao mesmo tempo é a criatura mais egoísta e cruel do mundo. É manipulativo mas manipulável. E ao longo do livro, mesmo com todos os seus impulsos, sabe que devia ir à escola para o pai Gepetto ficar feliz.

É, lá está, fácil o suficiente odiar Pinocchio, a personagem, por tudo o que faz - o que acresce à facilidade em esquecer o número de vezes em que nos é dito que ele está com fome, cansado, em sofrimento, envergonhado. É fácil esquecer os impulsos emocionais de Pinocchio, como ele abraça Gepetto quando sabe que este vendeu o casaco e tem frio. Tudo isto faz parte da personagem - não só o egoísmo, mas o amor e devoção por Gepetto e pela Fada, e como ele reage quando sabe que o pai está em perigo (mete baleias).

"Boys who minister tenderly to their parents, and assist them in their misery and infirmities, are deserving of  great praise and affection, even if they cannot be cited as examples of obedience and good behaviour.

No fim do livro, tal como no fim do filme, Pinocchio torna-se num menino de verdade - é bom o suficiente, ou é domesticado o suficiente.

Gostei particularmente do postfácio desta edição: não tenho o maior hábito de ler notas, prefácios, introduções, etc, mas esta é muito boa, pelas perspectivas que dá da obra, na sua comparação com o clássico da Disney, e nas várias leituras - infantis e adultas - que se podem fazer do livro, levantando também a questão do sistema social rígido, do privilégio que era a possibilidade da educação na Itália do século XIX (um país muitíssimo pobre) e, lá está, a ideia de ter de "civilizar" os rapazes para as tornar em criaturas "socialmente aceitáveis".

5/5

Podem comprar esta edição aqui (com outra capa), ou em português aqui.

Comentários

  1. A edição do livro é muito bonita e a história em si é muito boa, como escreveste: 'Pinocchio tem compaixão, mas ao mesmo tempo é a criatura mais egoísta e cruel do mundo. É manipulativo mas manipulável. E ao longo do livro, mesmo com todos os seus impulsos, sabe que devia ir à escola para o pai Gepetto ficar feliz.' é o que todos somos, nem que seja uma vez na vida

    Bastante diferente do filme sim e há muitos clássicos infantis violentos de facto, por um lado ainda bem que os filmes, da Disney p.ex., são diferentes, para quem gosta de literatura e cinema consegue ter aqui múltiplas experiências completamente diferentes mas igualmente boas

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    Respostas
    1. É uma edição muito bonita sim, obrigada por me facilitares a sua leitura :p sim, todos somos impulsivos e egoístas (logo, humanos?), mas Pinocchio é-o, muito, e de forma muito inconsequente. É quase perturbador ver como ele cai repetidamente nos erros...

      É verdade, as versões da Disney são mais "limpinhas", são outras versões de uma história, mas apresentam-nos a clássicos e obras que de outra maneira se calhar teriam caído no esquecimento! E valem ambos a pena, cada um à sua maneira.

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