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The House on Mango Street

Como é crescer pobre e latina nos anos '60 nos Estados Unidos?


Comprei este livro ainda em Paris, numa Boulinier, por talvez 1,50€. Ler este livro foi uma experiência maravilhosa por um motivo: as marcas de uso que trazia. Ou seja, eu, quando leio em espanhol (e às vezes francês), anoto o significado de certas palavras à margem. A anterior dona deste livro (assumindo, pela caligrafia, que era uma dona) fazia o mesmo: sublinhava algumas palavras e escrevia o seu significado em francês.

Mas o livro em si é também delicioso. É uma leitura bastante rápida; Sandra Cisneros cresceu no norte de Chicago, e escreve sobre crescer nesse bairro, numa casa má, numa rua pobre. Fala sobre os seus vizinhos, as suas experiências, no tempo em que as crianças saíam de casa para brincar e só voltavam de noite, com tempo para explorar, para se magoarem. Quem já leu Os da minha rua, de Ondjaki, poderá encontrar aqui uma comparação possível.

Quem mais tem nostalgia pela infância?

A protagonista deste livro é Esperanza (nome muitíssimo adequado) Cordero, a filha mais velha de uma família latina que todos os anos muda de casa. Esperanza sonha com uma casa definitiva, com uma casa boa - e os pais compram a casa em Mango Street, que deixa muito a desejar, mas pertence-lhes. E, como tal, a casa e a rua tornam-se parte da vida de Esperanza, que nos relata episódios soltos da sua infância e adolescência em Mango Street em pequenos textos de duas, três páginas.

In English my name means hope. In Spanish it means too many letters. It means sadness, it means waiting.

A autora também mudou de casa várias vezes, e foi dessa experiência que retirou as vinhetas aqui presentes. E é de forma brilhante que nos relata, do ponto de vista de uma criança, as desigualdades ligadas não só com o facto de ser uma minoria nos Estados Unidos, mas aquelas da sua cultura, do seu género, da sua família pobre.

Nestes pequenos relatos, temos entrada directa em momentos e pessoas relevantes da vida da pequena Esperanza, do seu dia-a-dia, do seu sonho de se tornar escritora e sair de Mango Street (sabendo que Mango Street é, indelevelmente, parte de quem ela é). Há personagens recorrentes, e outras que aparecem apenas uma vez - podiam ser entradas num diário. Mesmo não seguindo a estrutura tradicional de um romance, seguem uma linha cronológica, e no fim Esperanza é uma pessoa diferente, pois os vários episódios mudaram a forma como ela vê a vida; já não é a menina sozinha e assustadoramente assustada.

Em cada capítulo encontramos uma história, solta. Cada uma, uma narrativa dos anos 60, sobre como o bairro melhor para o qual a família Cordero se mudou é o tipo de bairro de onde se sai quando se tem dinheiro para melhor, onde as mulheres não são felizes, e cujas tentativas de felicidade se resumem a ser esposas, mães, subjugadas a alguém. As casas devolutas, as expectativas baixas, os pais controladores, a importância da família e da comunidade.

If I give you a dollar will you kiss me? How about a dollar. I give you a dollar, and he looks in his pocket for wrinkled money.
We have to go right now, Lucy says taking Rachel's hand because she looks like she's thinking about that dollar.

Não é um livro em que aconteça muita coisa; são eventos banais, assustadoramente reais e realistas sobre Esperanza, a sua família, a sua irmã, os seus vizinhos: Marin, de Puerto Rico, Ruthie, a tia Lupe, um sem-número de pessoas que querem compreender o que as rodeia e a sua identidade. Sally, a rapariga tão bonita e tão triste. Há muita nostalgia, muitos sentimentos. Há imagens de uma enorme beleza, mesmo quando a sua mensagem é triste.

When I am too sad and too skinny to keep keeping, when I am a tiny thing against so many bricks, then it is I look at trees. When there is nothing left to look at on this street. Four who grew despite concrete. Four who reach and do not forget to reach. Four whose only reason is to be and be.

Acima de tudo, Esperanza resiste à opressão. À opressão de ser mulher, à opressão de ser pobre.

Sally, you lied. It wasn't what you said at all. What he did. Where he touched me. I didn't want it, Sally. The way they said it, the way it's supposed to be, all the storybooks and movies, why did you lie to me?

The House on Mango Street é dedicado às mulheres - e é compreensível, pois é um livro que, parte biográfico e parte ficção, dá voz às mulheres latino-americanas, um livro que deu a várias mulheres do mesmo contexto social uma oportunidade de escrever e de se encontrar na sociedade americana - de encontrar o sonho americano. Porque Esperanza é pobre, e é uma voz para milhares que estavam ou estariam no escuro. Esperanza é optimismo, e é por isso que o seu nome ressoa.

Nevertheless, she persisted.

5/5

Podem comprar esta edição aqui, ou em português aqui.

Comentários

  1. Ter nostalgia pela infância é um clássico

    Bem por começar? Gostei muito do post, vê-se que gostaste muito do livro. Nota-se logo nos primeiros parágrafos, toda a história que o livro enquanto bem físico tem, as suas as marcas de uso, o sublinhar e o escrever, dá um toque ainda mais especial à leitura
    E o livro parece muito bom, tenho bem presente de quando me falaste nele e eu quero-o sem dúvida ler um dia
    Props para o Ondjaki também claro mas principalmente para ti e para o teu blogue, can't wait pelo próximo post!

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    1. P.S. O facto de teres comprado numa Boulinier, por 1,50€, em Paris - toda a história, a descoberta, compra espontânea e imprevista? Dá mesmo aquele toque especial, são as pequenas coisas sabes?
      Cascais, Cyrano de Bergerac, teatro, recordar é viver

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    2. O livro é mesmo muito bom sim :p cheguei a emprestar-to, certo? :$ é engraçado ver as vidas passadas dos livros usados :p este é um livro que estava na minha wishlist há muito tempo, foi uma compra não planeada sem dúvida mas valeu muito a pena!
      Haha props para o Ondjaki :p
      Lembro-me claro, muitas saudades de Cascais, e de ir ao teatro também! Lembro-me muito bem dessa livraria alfarrabista, daquela pizza esquisita que comemos :p

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    3. Certo :D
      Ahah daquela pizza esquisita que comemos :p

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  2. Nunca li a escritora, Os da minha rua já esteve na minha lista de compras e depois optei por Os transparentes de Ondjaki e deste autor o que li gostei.
    Por aqui é difícil cruzar-me com obras assim a bom preço à venda, embora já tenha em festas comprado livros interessantes em quiosques de ONG.

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    1. Já eu, de Ondjaki, li apenas "Os da minha rua", e recomendo imenso; o meu namorado já leu vários do autor e também gostou de tudo (embora um pouco menos da poesia).
      Aqui por Lisboa também é difícil de encontrar - fora uma livraria solidária em Cascais, a Dejà-Lu. Quiosques de ONG também juntam boas causas a bons preços! Este foi comprado numa loja de livros usados em Paris, a Boulinier, quando lá estive em trabalho, e sobre a qual escrevi aqui: http://barbarareviewsbooks.blogspot.com/2018/01/boulinier.html

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  3. Adorei, Bárbara! E como gostava de deitar a mão a este livrinho! Amo recuar à infância e fiquei super entusiasmada com a tua opinião e com os excertos que nos "ofereces"!
    Comprei "Os da minha rua" na FLL e já sei que vou AMAR como amei "Uma escuridão bonita". Um dia destes pego nele e devoro-o! Depois conto-te! Entretanto, se me cruzar com este, trago-o na hora!

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    1. Ana, tens de o ler! A esse e ao "Os da minha rua", sobre o qual tenho algures uma opinião que faz muito pouca justiça ao livro. Ambos falam da vida de infância, de crescer pobre, num bairro, rodeado das mesmas pessoas - crescer com essas pessoas. A diferença é a perspectiva: uma mulher de origem latina nos EUA, ou um rapaz angolano, num bairro pobre de Angola.
      Este aqui existe na WOOK e é capaz de existir na Bertrand e grandes livrarias afins :) se "precisares", deixei ali um link!
      O meu namorado comprou este ano "Uma escuridão bonita", e fico feliz por ver que aprovas o livro :)

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    2. Já vi na WOOK e já anotei!!! Vou querer!
      Obrigada!
      "Uma escuridão bonita" é uma delícia - foi uma das melhores leituras que fiz em 2016!!!!
      http://osabordosmeuslivros.blogspot.com/2016/11/uma-escuridao-bonita-de-ondjaki.html

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    3. E eu vou querer saber a tua opinião, quando lá chegares :) vou já a correr ler! Beijinhos :)

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