Uma das minhas grandes memórias de 2010 é a leitura de Dom Casmurro numa tarde de chuva passada no 738.
E gostei muito do Dom Casmurro, da eterna intriga brilhantemente colocada, da construção das personagens, do romance de Bentinho e Capitu. Dom Casmurro tornou-se num dos meus livros preferidos, e claro que passei os últimos cerca de sete anos a pensar em chegar a mais alguma obra de Machado de Assis.
As Memórias Póstumas é um livro incrivelmente modernista, com capítulos compostos apenas de longas reticências, e partindo de uma premissa singular: são, efectivamente, memórias póstumas, decidindo o narrador contar a sua história partindo da sua morte, para depois regressar à infância e chegar, connosco, à idade adulta.
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas
Tal como na Crónica de uma morte anunciada, pelo título sabemos, a priori, que o narrador falece. Aquando da sua luta contra a morte (por pneumonia, ironicamente após inventar um emplastro que curaria a hipocondria), descobrimos o romance falhado de Brás Cubas com a mulher que o visita, Virgília, mas sem grandes detalhes. Passamos então à história familiar e infância de Brás Cubas, filho de um homem que queria esconder as suas raízes mais plebeias, numa altura em que a Corte portuguesa vivia no Brasil. Criança endiabrada a quem tudo era perdoado, cedo Brás Cubas caiu nos encantos de Marcela, prostituta de luxo de origem espanhola, com quem tem uma relação ainda algo duradoura.
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.
Ao que o seu pai o tenta reencaminhar na vida, levar para caminhos mais altos e mais dignos, a Universidade de Coimbra, a política e, finalmente (após um namoro com a filha coxa de uma amiga pobre da família), uma noiva de bem. E essa noiva de bem é, nada mais, nada menos, que Virgília, filha de gente influente, a mulher que o visita no leito da morte, um casamento que lhe poderia dar uma carreira política. Mas Virgília acaba por preferir outro, que diz que a fará baronesa, e é neste que recai a escolha para o cargo político.
Brás Cubas fica sem nada.
Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.
Problemas com a família sobre heranças, o retorno de Quincas Borba, amigo de infância tornado filósofo louco (e personagem central de um outro romance do autor, ao qual dá nome): é neste quadro que Brás inicia com Virgília o romance que não tiveram quando foram noivos, num cenário extraconjugal de quase-escândalo. Cria um jornal de oposição política, tenta novos cargos, arranja uma noiva que não Virgília, mas nada dá resultado - e chegamos, assim, com uma carga forte de ironia, ao momento final, da morte, dando um círculo inteiro à obra.
Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
E este é, verdadeiramente, Brás Cubas: um homem que pensava a fundo na sua vida e metia esses pensamentos de lado, se dava a uma vida frívola e vazia, um homem ao mesmo tempo completamente tapado ao que o rodeava, mas sensível a tudo. Brás Cubas viveu e morreu sem fazer nada de grandioso, e é sobre isso que escreve: sobre ter vivido e sentido que a sua vida não serviu de nada, não alcançou nada. Não teve grandes sofrimentos nem grandes alegrias, mas acaba por reconciliar a sua morte com as suas ideias de sucesso, com a beleza dos seus pensamentos e sobre aquilo que retirou verdadeiramente da sua vida privilegiada e vazia.
É uma obra repleta de humor, por mais "trágica" que aparente ser esta vida vazia, com sabedoria e ironia lado a lado, demonstradas pela forma inconsequente com que Cubas fez tudo aquilo a que se dedicou. É uma personagem extremamente humana, com uma vida sem qualquer tipo de feito ou evento, mas sem qualquer julgamento sem ser o do próprio, auto-comiseração, memórias, erros e confissões de culpa. A vida é bela mesmo quando não se consegue nada.
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.
ResponderEliminarMuito bom :p o livro parece bastante interessante mesmo, sabes que quero ler Machado (não o gang) há algum tempo :p
Haha o gang :p lê siiiim, vale muito a pena :p
EliminarGostei muito deste livro, mas há uma diferença substancial entre a crónica de uma morte anunciada e estas memórias póstumas, é que no livro de Gabriel Garcia Marquez é um terceiro que narra o dia da morte do falecido, aqui é o morto que narra a sua vida já depois de morto. Mas a ironia, o retrato social e a beleza de escrita torna este livro maravilhoso.
ResponderEliminarÉ verdade, ambos escritos de pontos de vista diferentes - a minha única comparação foi o título anunciar já a morte de ambos. Sem dúvida um retrato social fantástico, bem como uma auto-reflexão muito boa!
EliminarIsto de ler uma opinião sobre um livro e ficar a querer ler três livros vai levar-me à falência...
ResponderEliminarHahaha compreendo bem Rita :) por um lado, sinto muito - por outro, faz-me acreditar que transmiti bem o sentimento do livro!
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