Avançar para o conteúdo principal

Viagens na minha Terra

Li este livro em Novembro, para o projecto "Ler os Nossos", da Cláudia. Mas nunca é tarde para escrever a opinião, certo?


Este não é, de todo, um livro popular. Até à data, nunca vi quem tivesse gostado dele: por exemplo, a minha mãe sempre me tinha dito que não suportava os amores da Joaninha, a Sara leu pela mesma altura que eu e não gostou, e temos a célebre frase da Sandra no último encontro do Clube dos Clássicos Vivos, "cortem-me os pulsos já". No entanto, eu sou teimosa. Isso, e gostei do Frei Luís de Sousa (também sou a única pessoa que gostou, do que percebo); então decidi, aquando da minha estadia no estrangeiro, ler aquela que é uma das obras mais conhecidas e menos apreciadas da literatura portuguesa.

A narrativa divide-se em duas grandes partes: a viagem do narrador por Portugal, e o romance trágico que lhe é relatado em Santarém. Não é, portanto, uma estrutura muito comum ou tradicional, e passei grande parte do livro a pensar como raio se ia enquadrar uma história de amor no meio de um relato de viagem.

O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssimia e perfeita (...)

Dá vontade de ir a Santarém (onde confesso que nunca fui).

Comecemos talvez pelo romance, parte mais curta do livro: é sofrível, é pavoroso. Joaninha, a menina dos rouxinóis dos olhos verdes, o seu primo e amado Carlos, a avó cega, o Frei Dinis que não desampara a loja (a casa), a noiva inglesa, a guerra civil, é tudo previsível e é tudo uma drama familiar banal e basicamente uma seca. Pode-se resumir o romance com "morrem todos", que não é exactamente verdade, mas fica perto.

Mas eu gostei da parte da viagem. Do contexto social, do contexto histórico, das reflexões e da crítica, a crítica pesada e forte e sempre presente.

Este é que é o pinhal da Azambuja?
Não pode ser.
Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico! E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro de Malas-Artes. que logo, em imaginação, lhe não pusesse a cena aqui perto!...

A crítica é fortemente social e política, pois Garrett explora (embora algo superficialmente) a temática da guerra civil e do liberalismo, criticando o regime liberal pelo qual lutara, mas também a guerra em si, as condições de vida do povo, os costumes; critica muito, muito profundamente a religião e o clero, algo especialmente visível não só na construção da personagem de Frei Dinis, e de toda a sua história, mas também nos vários conventos e igrejas que visita na sua viagem. Há vários momentos de confronto com a religião e o clero ao longo do livro, especialmente depois do fim da história de Carlos e Joaninha.

Ergue-te, Santarém, e diz ao ingrato Portugal que te deixe em paz ao menos nas tuas ruínas, mirrar tranquilamente os teus ossos gloriosos; que te deixe em seus cofres de mármore, sagrados pelos anos e pela veneração antiga, as cinzas dos teu capitães, dos teus letrados e grandes homens.

Os vários lugares que vão sendo visitados, e o estado de decomposição e degredo em que se encontram são, pelo autor, confrontados com a grandiosidade da sua história ou dos seus mitos. Não só a floresta da Azambuja é alvo, mas também a maioria dos monumentos de Santarém, que parece deixado às ruínas.

Uma outra área em que Almeida Garrett se demonstra conhecedor é a literatura, que pensa enquanto expressão social. Fala de Dumas e de Victor Hugo, dois dos seus grandes contemporâneos, critica a literatura que se faz no seu século, bem como a poesia, e fala também de Camões e do estado do teatro.

Estou deveras fatigado de Santarém; vou me embora.

É um livro um pouco estranho pela sua estrutura invulgar; tinha ouvido horrores sobre a narrativa, e talvez por isso saí positivamente agradada pela leitura. A história de Carlos e Joaninha é algo pavorosa, não escondo - mas mesmo aí a crítica é forte, na componente da guerra civil, da religiosidade e do clero, do romantismo literário, da visão sobre os ingleses e os seus costumes. Recomendo o livro a quem quiser saber mais sobre o nosso país, a quem quiser ler mais da nossa literatura clássica, a quem não tiver receio de ler nas entrelinhas e ver que já em 1846 o estado de decadência da sociedade e dos monumentos era avançado e criticado.

Fica ainda a menção que, em certos aspectos não me ajudou a sentir mais em casa... nomeadamente pela frequente (e bastante no início) menção de vários sítios célebres de Paris, como por exemplo:

Voltar à meia-noite do Bois de Boulogne - o bosque por excelência, descer, entre nuvens de poeira, o longo estádio dos Campos Elísios, entrever, na rápida carreira, o obelisco de Luxor, as árvores das Tulherias, a coluna da praça Vandoma, a magnificência heteróclita da"Madalena" (...)

4/5 do contra desde 1990

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Nunca é tarde para escrever a opinião :p

    Não se deve julgar um livro pela capa, literature 101 claro, mas essa capa é bem bonita

    Continuando, havemos de ir a Santarém :p

    'basicamente uma seca'? Uau, é verdade que o dizes em relação a uma parte específica do livro mas não me lembro de ter lido algo assim da tua parte em relação a qualquer outro livro, ainda assim recebeu 4/5?

    'Fica ainda a menção que, em certos aspectos não me ajudou a sentir mais em casa' Oh Ba, acredito, mas Paris foi a tua casa também

    'do contra desde 1990' That's you alright :p

    Gostei da review, também tenho curiosidade em ler o livro

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Haha literature 101 :p as capas desta colecção são bem bonitas sim :o muito bem conseguidas!

      Havemos sim :p

      É na verdade uma parte bem curta do livro - do que percebo, a maioria das pessoas foca-se nessa parte do livro, mas nem deve chegar a 50 páginas das praí 250 do livro, percebes? É um romancezinho chato, e acho que o livro oferece muito mais do que esse drama familiar :p o restante é muito bom, uma narrativa de viagem que vai criticando muito do que vê!

      Oh, mas longe de ti :(

      Sou sim :p

      Irás ler :o :p mais um para levares para casa :p

      Eliminar
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  3. É interessante ver a tua opinião tão diferente da minha. Especialmente tendo em conta que, infelizmente, não gostei muito do livro. Talvez por ouvir falar tão bem do autor e de gostar bastante de Frei Luís de Sousa, tenha entrado com demasiadas expetativas (posteriormente já ouvi muita gente que ama o autor e que não gosta deste livro, mas quando o comecei não fazia ideia das opiniões tão contraditórias sobre esta obra).
    Houve partes sim que gostei, a história entre o Carlos e a Joaquina foi, honestamente, muito curiosa para mim, mas mal começava uma parte boa que envolvesse a história, lá começava o autor a divagar (de novo).
    Em geral, achei o livro demasiado arrastado e com partes que achei um pouco desnecessárias. No entanto, ouvi também já diversas opiniões positivas. Penso que deve ser daqueles livros que ou uma pessoa gosta, ou uma pessoa não gosta. Infelizmente, não fui das que gosta.
    Quem sabe goste mais do próximo que vá ler do autor, essa esperança ainda não perdi!
    - Mad (http://presa-nas-palavras.blogspot.pt)
    (Tive de remover o meu comentário anterior por um erro de português que me estava a meter impressão, mas a mensagem geral era esta)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Acho que a minha opinião sobre este livro é muito pouco popular/comum! Que as opiniões são mais negativas que contraditórias - pelo menos não conheço ninguém que tenha gostado :) apenas uma senhora que comentou no facebook do blog a dizer que adorava. Mas ao menos há outra pessoa que gostou do Frei Luís de Sousa :D qual o próximo que planeias ler, do autor?

      Percebo isso das divagações, e percebo que o romance seja um escape às mesmas - curiosamente achei o romance em si previsível e achava mais piada à crítica :) acho que há duas boas ideias no livro, nenhuma totalmente explorada, o "travelogue" e o romance...

      Eliminar
  4. Um livro sobre a minha terra que já li e não gostei particularmente. Com muita pena minha. Que bom que gostaste. Tens de ir visitar Santarém :)
    Beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. que pena, Isaura! lá está, não é realmente um livro popular... tenho sem dúvida de visitar, quando acontecer peço-te umas dicas :D

      Eliminar
  5. Li-o quando andava no secundário porque era leitura "obrigatória" e confesso que me lembro muito pouco dele, mas realmente não gostei muito da leitura na altura. Mas é um livro que tenho curiosidade em ler por lazer e não para esmiúçar como na altura e ver o que é que acho :)
    Santarém tem vistas bonitas. Não sou de lá, mas sou do distrito :) bjs

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Acho que não é o livro mais fácil, especialmente não se se estiver realmente a esmiuçar. Acho que isso em si já estraga 90% dos livros, estar à procura do significado em cada palavra e símbolo... bah! Acredito que seja um livro que se lê melhor com distância da escola, e não com 16 anos. Tenta, um dia!
      Todo um distrito que gostaria de conhecer melhor, por acaso :) beijinhos!

      Eliminar

Enviar um comentário