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Novas Cartas Portuguesas

Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?


As palavras podem muito, a atentar na história desta obra. As suas três autoras foram julgadas, em 1973, por terem escrito um livro com teor pornográfico, atentando assim contra a moral pública. Será de pensar que, à época (o livro foi publicado em 1972, na Primavera Marcelista), o livro seria escrito ou publicado já censurado, sendo o dito conteúdo obsceno já filtrado ou subreptício - mas não. O livro foi escrito explícito, e foi publicado explícito. Natália Correia recusou-se a alterar qualquer palavra, mesmo tendo sido instada a editar o livro (já Snu Abecasis tinha passado por problemas semelhantes com a obra de Maria Teresa Horta). Poucos dias depois, o livro era apreendido e enviado à PJ para processo crime.

Sendo a obra composta por 120 textos, nenhum deles assinado, muito do processo consistiu em tentar compreender qual das três teria escrito certos excertos, considerados mais obscenos; no entanto, e até hoje, só se sabe que a primeira carta foi escrita por Maria Isabel Barreno. As três Marias nunca revelaram absolutamente mais nada.


O julgamento teve repercussões a nível mundial, tendo mobilizado mulheres como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras ou Iris Murdoch (três mulheres que quero ler), a cujas mãos uma tradução do livro chegou clandestinamente, tendo sido a primeira causa feminista internacional. Muitas petições e protestos chegaram às representações diplomáticas portuguesas no estrangeiro. Dada esta dimensão, o julgamento final (inicialmente agendado para 18 de Abril) ficou adiado para Maio de 1974 - e foi o 25 de Abril que pôs fim a esta questão.

A forma como o livro é composto cria novos conceitos de autoria, dada a falta de assinatura de cada um dos textos; o livro em si é composto por fragmentos vários, sendo de um teor experimental inegável. São cartas, excertos de notícias e comentários, excertos de legislação, poemas...

Passemos, então, ao conteúdo. As Novas Cartas Portuguesas partem das cartas de Mariana Alcoforado, da condição da mulher enclausurada no convento, desgraçada por um romance por ter sido abandonada pelo amante (nunca marido), ao mesmo tempo que este não sofria quaisquer consequências pela aventura. Mariana assume o papel de mulher portuguesa - de todas as mulheres portuguesas. A partir daqui, as três autoras escrevem e reescrevem cenários que envolvem não só a freira que ficou conhecida pela sua desventura amorosa, mas a guerra colonial, a emigração em massa e os seus efeitos na sociedade portuguesa, a estrutura familiar portuguesa, católica, e o papel que esta legava às mulheres, devolvendo-lhes, nestes textos, a sua sexualidade, entre outras críticas políticas e sociais que, obviamente, não passaram ao lado do Estado.

Mas o grosso do conteúdo é dedicado às várias formas de subjugar as mulheres na sociedade: a família, a religião, a violência, a opressão sexual, seja pela sua negação ou através de violações. 

Apesar da sua clara relevância, enquanto livro de crítica social, crítica feminista e, também, obra de arte literária, foi colocado num lugar de esquecimento durante muito tempo, tendo estado indisponível e carecendo de edição durante largos anos. Esta nova edição vem com anotações que estabelecem ligações entre vários pontos da obra, bem como entre a obra e referências, literárias ou culturais; peca, no entanto, por um motivo: por ter notas de fim de livro, em vez de notas de fim de página (o que, honestamente, me aborrece, até porque aqui eu as queria mesmo ler).

5/5 fundamental

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Estou tãooo feliz que este livro comece a ter mais visibilidade. Não me canso de o recomendar e descreveu-o da forma que eu gostaria de ter feito.
    Concordo plenamente que é uma leitura fundamental.

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    1. E eu fico muito feliz com as palavras da Cristina :) muito me lisonjeia!

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  2. 'Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?' Tanto Ba, tanto

    Épica foto

    'notas de fim de livro, em vez de notas de fim de página' damn it, whyyy?
    Mas quero muito ler o livro um dia, gostei muito do post, parece um livro essencial, fundamental como disseste

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    Respostas
    1. Pergunta colocada no livro :p

      A que tirei ou a delas a ir para o tribunal? :o

      Irás ler :p mas sim, é bué chato saltar de páginas!

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  3. Ai, tão bom <3 Fiquei com vontade de o ler outra vez :)

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  4. Muito curiosa... Fica anotado para uma próxima ida à biblioteca!

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