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Krabat - O Moinho do Feiticeiro

As minhas lacunas na literatura alemã são imensas.


Li os dois livros mais conhecidos de Herman Hesse, os dois mais conhecidos do Goethe, o Perfume, o The Reader, um da Herta Müller e acho que é tudo. Sabendo que a tradição literária de fantasia no país é forte - dos Irmãos Grimm a Michael Ende -, decidi atirar-me a Krabat, de Otfried Preussler.

Não sabia nada sobre o livro. Uma breve pesquisa levou-me a descobrir que, em inglês, o título é traduzido como The Satanic Mill, e que Krabat é uma personagem do folclore sorábio (um grupo étnico eslavo da Lusácia, que apanha parte da Saxónia, na Alemanha, e entra um pouco na Polónia). Acho a ideia de adaptar contos de fadas ou folclore interessante, e o meu interesse no livro aumentou.

Cenário: Guerra da Pomerânia (entre a Prússia e a Suécia), entre 1757 e 1762. Krabat, um órfão, mendigo, de 14 anos, que está a fazer uma encenação dos Três Reis Magos com outros rapazes, tem uma série de sonhos estranhos com onze corvos e uma voz a incitá-lo a ir para a azenha de Schwarzkollm. O chamamento é forte e Krabat decide segui-lo, pedindo direcções a transeuntes.

- O que foi? - perguntou Krabat.
O velho chegou-se ao pé dele e disse com um ar amedrontado:
- Só queria prevenir-te, meu rapaz. Evita o Koselbruch e a azenha da Água Negra, aquilo é um bocado suspeito...

Ao chegar à azenha, é recebido pelo Mestre, que o esperava para ser o aprendiz e lhe oferece trabalho, casa e comida, juntando-se a um grupo de 11 rapazes. As condições são talvez demasiado boas para ser verdade, tendo em conta o contexto histórico: a comida é farta, o espaço é quente num inverno duro, o trabalho e a chance de aprender o mester são reais. Krabat trabalha noite e dia (numa altura em que o trabalho infantil era normal e esperado), mas sente-se bem. É como se lhe tivesse saído a sorte grande.

Krabat começa a aperceber-se de algumas coisas estranhas: os seus colegas são estranhos, o seu Mestre é estranho, e todos os meses recebem a visita nocturna de um homem com uma pena de galo no chapéu, cuja carruagem, negra como os seis cavalos que a puxam, não deixa marcas no solo. Os onze colegas e o Mestre trabalham afincadamente na carga que o Compadre traz, uma vez por mês, e não chamam Krabat. Sem ser este, não parece haver mais clientes. Gradualmente, este começa a perceber que lhe escondem algo...

Mas, contrariamente ao que Krabat esperava, não havia quaisquer grãos por baixo da moega. Aquilo que estava espalhado pelo sobrado e que, à primeira vista, parecia serem seixos, eram dentes... dentes e estilhaços de ossos.
O terror apoderou-se do rapaz, quis gritar, mas a garganta não conseguiu articular nenhum som.
De repente Tonda estava atrás dele. Krabat não deve tê-lo ouvido chegar. Tonda agarrou-lhe na mão:
- Que estás tu a fazer cá em cima, Krabat? Anda lá para baixo, antes que o Mestre te apanhe... e esquece o que viste aqui. Estás a ouvir, Krabat? Esquece!

E, a prazo, Krabat descobre: não só é aprendiz de moleiro, mas também aprende, com o Mestre, todas as Sextas-Feiras e em forma de corvo, magia negra. Eram livres de aprender ou não aprender, conforme desejassem, e são estes poderes que permitem aos rapazes aguentar o trabalho árduo. Krabat apercebe-se dos possíveis benefícios, e decide aprender o melhor que puder. Tonda, o aprendiz mais velho, toma Krabat como uma espécie de protegido, embora isto não possa ser contado a ninguém. E, na Páscoa, ficam os dois juntos num ritual que introduzirá Krabat como um dos companheiros. É aqui que Krabat ouve a voz de uma rapariga a cantar, e se apaixona pela sua voz - porém, como descobre através de Tonda, as paixões no Moinho têm um preço muito alto.

Krabat já conhecia aquilo. Na sua aldeia, durante a noite de Páscoa, as raparigas costumavam percorrer a rua para cima e para baixo, sempre a cantar, da meia-noite ao romper do dia. Caminhavam juntas, em grupos de três ou quatro, em filas cerradas, e uma delas - Krabat sabia-o - era chamada de Kantorka: era ela que, com a voz mais pura e afinada de todas, seguia na fila da frente e dava o mote - só ela.

Tudo, aliás, tem. Chega Dezembro e uma atmosfera de medo envolve os 11 companheiros de Krabat, que não percebe o que se passa. Quando tenta escapar ao mal que envolve o Moinho, descobre que está preso na magia do Mestre...

- O que é que eles têm?
- Medo! - respondeu Tonda, evitando olhá-lo de frente.
- Medo de quê? - insistiu Krabat.
- Não posso falar disso. No devido tempo, saberás.
- Então e tu, Tonda? - perguntou Krabat. - Tu não tens medo?

O ciclo repete-se, ano após ano, numa narrativa dividida em três livros (um por cada ano). Com o início do terceiro livro, sentimos que o padrão se irá repetir, mas agora Krabat está mais velho, e é o mais sábio dos companheiros. Krabat está apaixonado pela Kantorka, tendo usado os seus poderes para se conseguir aproximar dela, não se podendo encontrar com ela fisicamente; sonham juntos. Mais que isso, descobre agora os limites da magia negra, e os limites do seu Mestre: poderoso e despótico, estava hierarquicamente abaixo do Compadre.

Mas parece impossível fugir a esta situação. A única maneira de escapar parece ser num caixão... Até que ponto a magia negra confere liberdade a quem a conhece?

- Há um tipo de magia que tem de ser aprendida com esforço: é a que nos dá o Koraktor, símbolo a símbolo, fórmula a fórmula. E há outra que nasce das profundezas do coração: nasce da preocupação que temos por alguém que amamos. Sei que é difícil de entender... mas acho que devias acreditar nisso, Krabat.

Não há descrições floreadas, não há moralismos num livro que, no fundo, é sobre o bem e o mal - sobre até que ponto se pode aceitar o mal em troca de grandes poderes. É sobre preços demasiado altos, sobre arriscar tudo em troca da liberdade, do amor. O final é talvez um pouco apressado, mas não interferiu com o quanto gostei do livro.

Li um pouco sobre o autor, e a narrativa parece algo reminiscente da sua vida. A forma como os doze rapazes deviam aceitar e não questionar o que se passava no Moinho é um pouco como a população não devia questionar o que se passava no Terceiro Reich; o próprio autor foi levado para a frente oriental da guerra, tendo sido capturado pelos russos e passado cinco anos num campo para prisioneiros de guerra na URSS. Quando foi libertado, foi para a Bavária e descobriu que a sua namorada tinha esperado por ele. Casaram nesse mesmo ano.

O amor realmente conquista tudo.

5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Normalmente conheço melhor este género fantástico/negro da literatura através do cinema. Embora o tema me pareça interessante.
    Não conheço muitos escritores alemães e austriacos, mas Kafka só é checo geograficamente pois é boémio, ou seja população alemã da república Checa ou Tcheca e penso que o conhece bem. Herta Muller também é alemã proveniente de uma minoria na Roménia.
    Além do meu fascínio por Kafka, também gosto muito de Thomas Mann, sobretudo os seus 3 grandes romances que me marcaram: Os Buddenbrook, A Montanha Mágica e o Doutor Fausto (o mesmo nome de Goethe), espero ainda ler a tetralogia bíblica dele José e seus irmãos, esgotada em Portugal.

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    1. Eu conheço pouquíssimo o fantástico/negro, e gostei de conhecer esta obra que, apesar do cariz juvenil, aproveito para lhe recomendar, pois vale bastante a pena.
      A questão de Kafka acho interessantíssima pois, tendo nascido em Praga e tendo escrito em alemão, é "disputado" entre a Áustria (se não me engano) e a República Checa - já tive a oportunidade de ir a Praga e há vários monumentos e pontos da cidade dedicados ao autor (já Rilke nasceu em Praga e não é, de todo, considerado checo...); o livro que li de Müller é precisamente sobre a Roménia e a ditadura recente. Posto isto, preciso de conhecer melhor Kafka - li apenas A Metamorfose e O Processo, mas tenho Amerika na estante (trouxe, precisamente, de Praga).
      Nunca li Thomas Mann, mas irei anotar certamente as suas recomendações. Tenho curiosidade quanto à sua obra, e irei começar por esses.

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  2. Gostei muito deste post, o livro parece ser daqueles que têm um quê de especial, parece ser muito bom
    Também conheço muito pouco da literatura alemã fora propósitos académicos, só li aquele livrinho que me ofereceste numa noite friorenta em que foste ter comigo à faculdade e estava, precisamente, a estudar para os exames, gostei muito do gesto e do livrinho, recordar é viver, obrigado Ba

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    1. Eu gostei muito! Tem um contexto histórico muito pesado e interessante, a história pessoal do autor é muito interessante também e é possível estabelecer o paralelo...
      Esse livrinho :p fico à espera que mo releias :$

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