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Midnight's Children

Debati-me com este livro ao longo de três meses.


Fui ver Salman Rushdie falar ao Folio, em Outubro de 2016, sem nunca ter lido nada do autor. Essa lacuna prolongou-se até este ano, vergonhosamente. Dois anos volvidos, li Midnight's Children, o seu primeiro grande sucesso e um dos livros mais aclamados de sempre. E a sensação que retiro é que o livro é demasiado para mim, enquanto leitora. Não sei se demasiado bom - demasiado complexo - apenas demasiado.

What's real and what's true aren't necessarily the same.

Para começar, esta não é uma leitura rápida, de todo; é uma leitura quase desagradável de tão lenta, devido à multiplicidade de personagens, à densidade da prosa, e à frustração de um narrador que salta de ponto em ponto, frisando coisas que julga serem importantes mas que parecem meros detalhes, negando-se a revelar aquilo que é, de facto, importante.

O personagem principal, Saleem Sinai está a escrever uma história sobre a sua vida, ao mesmo tempo que a narra à sua companheira, Padma. Divergindo logo desde o início, começa a narrativa com a infância do seu avô Adaam Aziz, os seus estudos, como conheceu a sua futura esposa, os filhos que teve (demorando a revelar quem seria a sua mãe), o casamento e a vida do seus pais, até chegar ao seu nascimento. Posto isto - a história da sua família é magnífica e muitíssimo interessante.

Apesar desta demora, há um sentimento de urgência na narrativa, porque Saleem sente que a sua vida estará a acabar, e quer deixar o legado da sua família ao seu filho.

I am not speaking metaphorically; nor is this the opening gambit of some melodramatic, riddling, grubby appeal for pity. I mean quite simply that I have begun to crack all over like an old jug - that my poor body, singular, unlovely, buffeted by too much history, subjected to drainage above and drainage below, mutilated by doors, brained by spittoons, has started coming apart at the seams. In short, I am literally disintegrating, slowly for the moment, although there are signs of acceleration. I ask you only to accept (as I have accepted) that I shall eventually crumble into (approximately) six hundred and thirty million particles of anonymous, and necessarily oblivious, dust. That is why I have resolved to confide in paper, before I forget. (We are a nation of forgetters.)

Saleem Sinai nasceu precisamente à meia noite do dia em que a Índia se tornou independente: 15 de Agosto de 1947. Por este motivo, a sua história interliga-se com a história da Índia, assim como do Paquistão (que surgiu através do mesmo acto de independência). O título vem do facto de Saleem não ter sido a única criança a nascer na meia noite do dia da independência, mas ser apenas um de centenas. Num toque de realismo mágico, todas estas crianças têm um poder mágico ou mutação. E as mais relevantes serão Saleem e Shiva, um rapaz que nasceu no mesmo segundo que ele, e com cuja vida vê a sua frequentemente interligada. Shiva é violento e cruel, e ambos, ainda crianças, lutam pela liderança do grupo das "midnight's children".

Vou aproveitar esta introdução de Shiva para deixar esta frase proferida pelo próprio Saleem, que poderá dar alguma luz sobre a sua credibilidade enquanto narrador:

Memory has its own special kind. It selects, eliminates, alters, exaggerates, minimizes, glorifies, and vilifies also; but in the end it creates its own reality, its heterogeneous but usually coherent version of events; and no sane human being ever trusts someone else's version more than his own.

Entretanto, também com a Índia está o destino de Saleem inexoravelmente interligado. São, de certa forma, gémeos, nascidos na mesma hora, e os eventos na vida de um irão espelhar-se na vida do outro. Saleem Sinai recebeu uma carta acerca do seu nascimento a designar-lhe um destino brilhante. A influência da sua vida (e na sua vida) na vida política da Índia, bem como a história complexa da sua família (tão complexa como a história do seu país?) são quase inacreditáveis. A narrativa avança de forma não linear, mas ligada a eventos reais. Todos os personagens (tantos que é difícil lembrar de todos ao ler o livro) acabam por fazer sentido nesta história.

Será possível escrever sobre a história da Índia pela perspectiva apenas de Saleem Sinai? Por mais envolvido que ele esteja (ou se julgue)?

Admito desde já: possivelmente muitas das alusões a eventos históricos passaram-me ao lado, porque sou completamente ignorante acerca de muita da história da Índia. Mas a incorporação de eventos da história da Índia directamente na história da vida do narrador é, ainda assim, para quem como eu é limitado, interessante, porque é tudo colocado de forma mais "leve" do que seria talvez de esperar.

Who what am I? My answer: I am the sum total of everything that went before me, of all I have been seen done, of everything done-to-me. I am everyone everything whose being-in-the-world affected was affected by mine. I am anything that happens after I've gone which would not have happened if I had not come. Nor am I particularly exceptional in this matter; each "I", everyone of the now-six-hundred-million-plus of us, contains a similar multitude. I repeat for the last time: to understand me, you'll have to swallow a world.

...Quão egocêntrico é Saleem? Novamente, quão fiável enquanto narrador? É mesmo possível haver tantos paralelos na sua vida e na vida do seu país, ele ter interferido em tanto? Tudo neste livro é sobre ele, e torna-se difícil dizer quanta da magia no livro é real ou quanto é arrogância do narrador. Padma, por exemplo, passa o livro sentada aos seus pés a ouvir a sua história, e é fácil sentir a sua devoção - mas em troca de quê?

Todos os personagens do livro têm falhas enormes, mas Saleem aparece retratado como o pior de todos. O seu amor impossível, a sua incapacidade de se adaptar, a sua fraqueza, a sua arrogância. Apesar de não se assumir dono da verdade dos eventos que nos relata, de assumir o facto de a sua memória ter toldado a sua compreensão dos mesmos, parece convencido de ser um ser humano de extrema importância. E apesar disto, é difícil não sentir o seu orgulho, a sua culpa, a sua luta pelo amor e aprovação dos pais, de não sentir que esta narrativa é um acto de amor para com o seu filho.

Midnight has many children; the offspring of Independence were not all human. Violence, corruption, poverty, generals, chaos, greed and pepperpots ... I had to go into exile to learn that the children of midnight were more varied than I - even I - had dreamed.

E porquê as "midnight's children"? Qual o seu significado? O nascimento de uma "nova Índia", de um mundo novo, a "doença do optimismo", a promessa de grandeza (os poderes destas crianças!) e o eventual declínio do seu potencial, culminando na "Emergency", que começou a 25 de Junho de 1975, data em que nasce o filho de Saleem Sinai e de Parvati, outra das crianças que nasceram com poderes. E qual o significado do fim destas crianças precisamente com esta data? Terá coincidido com o fim da esperança?

Não sei, realmente, o suficiente sobre a Índia...

O livro é lento, mas vale a pena. Peca pelos demasiados personagens aparentemente supérfluos, pela frase recorrente whatitsname, por eventos pouco memoráveis. Mas a forma como todo o livro nasce e se junta desta "premonição" é magnífica:

A son who will never be older than his motherland - neither older nor younger. There shall be two heads – but you will only see one – there will be knees and a nose, a nose and knees. Newspaper praises him, two mothers raise him! Bicycles love him – but crowds will shove him! Sisters will weep, cobras will creep… Washing will hide him – voices will guide him! Friends will mutilate him – blood will betray him! Spittoons will brain him – doctors will drain him – jungle will claim him – wizards reclaim him! Soldiers will try him – tyrants will fry him… He will have sons without having sons! He will be old before he is old! And he will die before he is dead!

4/5

Podem comprar uma outra edição em inglês aqui, ou em português aqui.

Comentários

  1. És cá das minhas: um livro cai sempre melhor com uma bebida quente e um docinho! :-) E esse tem mesmo ar de ter sido lido...
    Lembro-me perfeitamente do dia em que peguei neste livro. Precisava de repouso absoluto, por isso, escolhi um livro grande de um autor consagrado. Humm... Livro errado na hora errada. Era mesmo denso! Depois comprei a Feiticeira de Florença para ver se era de abordagem mais fácil, mas ainda não me apeteceu pegar-lhe. Depois, herdei os Versículos Satânicos. Medo! Entretanto, já pensei que o Shalimar é que parece interessante. Queres mesmo falar de vergonha? Ah ah!
    Um dia, quando for mais crescida...
    Paula

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    1. Sempre - um bom cappuccino e um livro são ingredientes maravilhosos para uma tarde bem passada :)
      "Precisava de repouso absoluto, por isso, escolhi um livro grande de um autor consagrado" compreendo perfeitamente esta contradição! Só mais recentemente me comecei a dedicar a leituras mais leves - infantis, por exemplo -, pelo que fica muitas vezes difícil pegar num livro mais calmo :) e o pior é que, de facto, isto condiciona completamente as leituras futuras, mesmo quando se tem noção que foi o momento errado para se ler o livro!
      Eu ainda tenho, na estante e à minha espera, The Moor's Last Sigh e The Ground Beneath Her Feet. Vou também tentar crescer um pouco antes de me aventurar, embora duvide que sejam tão pesados como este!

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    2. Pois é, O Chão que Ela Pisa também parece tão poético... Será que devo começar por esse? Eh eh!
      Mas já que falaste da Índia, já leste o Deus das Pequenas Coisas? É tão deprimente, tão bom!
      E já que falamos do melhor Man Booker dos Man Bookers, já leste o Golden Man Booker, O Paciente Inglês? Acho-o ainda melhor que o filme.
      Paula

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    3. Talvez devamos ambas ler esse!
      Não li nem vi o filme d'O Paciente Inglês; já o Deus das Pequenas Coisas li no ano passado e adorei, há uma review aqui algures :) fiquei com muita curiosidade sobre a obra de Arundhati Roy, e um colega de trabalho indiano disse que realmente ela é super polémica pela Índia :)

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    4. À procura dessa tua review, caí num grande "rabit hole" e encontrei livros que tenho cá e agora quero muito ler e outros que ainda não tenho e quero ter! Bem feita para não ser cusca!
      E encontrei o excerto do Machado de Assis. Gira!
      E vi que gostaste do Grande Meaulness, que eu e a Ana tentámos ler no mês passado sem grande sucesso. Ups!
      Paula

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    5. Cusca por aqui à vontade :) que livros te aguçaram a curiosidade?
      Muito obrigada! Estava um calor abrasador e eu a derreter, mas achei a iniciativa da Cotovia muito gira e quis participar :)
      Foi um livro difícil de entrar mas depois gostei muito, atribuí a dificuldade ao francês! Mas percebo que é um início muito estranho...

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    6. Tenho vários do Machado de Assis, por isso, deu-me alento saber que gostaste do Brás Cubas. Sempre pensei começar por Helena, mas agora balancei.
      Dos que não tenho, mas posso trazer da nossa amiga biblioteca, Miss Brodie e História de Amor, de que nunca ouvi ninguém dizer mal.
      Paula

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    7. Nunca li o Helena, mas acredito que acompanhe a qualidade dos que eu li: Dom Casmurro, Memorias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba (estes dois últimos devem ser lidos nesta ordem) e O Alienista. Quero descobrir mais do autor!
      O Miss Brodie é maravilhoso - é um livro que ficou sem dúvida comigo, tem um espírito enorme! Acredito que vás gostar :) O História de Amor é muito interessante e muito diferente também, mas o Miss Brodie...!

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  2. E eu aqui com tantos livros para ler... Beijinhos*

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    1. Também eu, também eu! Este vale muito a pena, mas precisa de muita dedicação :)

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  3. Também o li há uns anos atrás, gostei mas custou me também a ler. Lembro de alguns pormenores que causaram repugnância inclusive, mas embora não saiba muito da India e com base na biografia de Gandhi os fenómenos do país não me passaram na sua maioria ao largo.

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    1. É verdade, há alguns momentos e detalhes no livro que levam a reacções mais fortes, quase físicas. Talvez tivesse sido, para mim, uma leitura mais fácil, se soubesse mais de Gandhi ou do país. Tive de parar muito para pesquisar e compreender melhor. Gostei muito do livro, também.

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  4. É dos casos raros que me lembro de te ver ao longo de tanto tempo com o mesmo livro sem dúvida; claro que 'tanto tempo' é muito aplicado ao teu caso concreto em que devoras livros completamente e por isso decidi do alto do meu poder que de facto três meses é muito tempo. Eu próprio não me lembro, mas é capaz de ter acontecido, de ler um livro ao longo de três meses - isto sem contar com aqueles de mesa tipo o do United que com tanto amor e carinho me ofereceste :p e portanto querendo cingir-me aos livros que leio maioritariamente nas minhas viagens
    Boa foto! É onde? Não estou a reconhecer, se bem que aquele croissant avermelhado.. choupana?
    Gostei muito de ver o Salman Rushdie no Folio, fiquei com imensa curiosidade em relação ao autor mas já estamos em 2018 e nada, realmente o tempo passa num instante; e quantos livros não lemos desda essa altura? Felizmente, e falo por mim claro, li alguns e muitos deles muito bons
    'como conheceu a sua futura esposa, os filhos que teve (demorando a revelar quem seria a sua mãe)' tipo himym? desculpa :$
    'ambos, ainda crianças, lutam pela liderança do grupo das "midnight's children".' dark
    Sinto que já estou a tirar muitas citações do teu post mas esta, enquanto citação que é, fala por si claro mas consegue ir mais além, no meu pensamento:
    'Memory has its own special kind. It selects, eliminates, alters, exaggerates, minimizes, glorifies, and vilifies also; but in the end it creates its own reality, its heterogeneous but usually coherent version of events; and no sane human being ever trusts someone else's version more than his own.'

    Mais um post memorável, gostei bastante, quero muito ler este livro mas, aproveitando as tuas dicas, talvez estudar um pouco mais a Índia primeiro; tudo a seu tempo.

    (We are a nation of forgetters.)

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    1. Demorei quatro meses a ler o One Flew Over the Cuckoo's Nest no ido ano de 2009 :$ conta? E há livros que abandono e volto a pegar, o Saki por exemplo, embora seja de contos, o Big Sur do Kerouac nesse aspecto demorou mais de um mês, comecei o Le Rouge et le Noir em Agosto do ano passado...

      Também estamos a ler o L'Art et le Chat há alguns meses :p

      Choupana e o seu croissant red velvet sim, foi ganda lanchinho :$

      Realmente já lá vão dois anos desde esse Folio, essa aventura em Óbidos :o gostei muito de o ouvir falar, mas ainda assim, e por não saber muito sobre a Índia de antemão, acho que ainda não estava muito preparada para este livro :$

      Não :$ o Saleem diz quem era o avô, diz quantos filhos teve o avô, mas não diz imediatamente qual das filhas era a mãe dele no meio de toda a descrição :p

      De facto muito do livro gira em torno das memórias possivelmente adulteradas do narrador, a forma como ele sente que tudo é culpa dele, ou influenciado por ele, ou que ele esteve lá e de alguma forma mudou o curso da história - quando qualquer leitor compreenderá que se tratarão de coincidências ou, ainda, megalomania de um louco :p

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    2. Conta mas eu aí nem te conhecia!
      De contos eu não conto, get it? Por exemplo, o livro do Jack London que tenho de compilação de vários livros - por assim dizer -, não são contos mas como são muito focados num mesmo tema, embora muito muito mas muito bons prefiro ler um, depois ler um outro livro ou dois de outro autor(a), depois ler mais um livro do Jack e assim sucessivamente
      Check para o L'Art et le Chat mas é um livro que estamos a ler em conjunto e nem sempre se proporciona :p
      Vamos ver qual a minha 'compreensão' quando ler o livro um dia
      Kudos

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    3. Pois não :(
      Got it :p mas o Big Sur não é de contos, por exemplo, apesar de o Saki ser :o
      Estou aqui para ver como será a tua experiência :p por enquanto, fica a promessa de ler mais L'Art et le Chat :$

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  5. Parece de facto uma leitura lenta, mas boa :)

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    1. Precisamente: o ritmo é lento, mas vale muito a pena :)

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