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Lady Macbeth de Mtsensk

Descobri este livro quando ganhei bilhetes para a ante-estreia do filme.


A personagem principal, que, de certo modo, dá o nome ao livro, é Katerina Lhvóvna Izmáilova:

(...) que desempenhou outrora um drama tão terrível que os nossos nobres, a exemplo de alguém de palavra fácil, passaram a chamá-la Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk.
(...) Tinham-na dado em casamento ao nosso mercador Izmáilov, de Tuskar, Gubérnia, de Kursk, não por amor ou qualquer atracção, mas simplesmente porque Izmáilov a pedira em casamento, e, sendo ela uma moça pobre, não podia escolher noivo.

Confesso que, por motivos que não me recordo, acabei por não ir à ante-estreia (e, até hoje, ainda não vi o filme...); porém, o livro ficou-me na ideia desde então.

O título é apelativo: a ideia de Lady Macbeth, o protótipo da vilã, a mulher que incita o seu marido a fazer o mal... e o facto de esta personagem ter inspirado um autor russo! Quando, por acaso, encontrei o livro na Biblioteca Municipal, e vi ser bastante pequeno, peguei-lhe; sentei-me com ele numa poltrona e acabei em pouco mais de uma hora.

Katerina, esposa agora de Zinovi Izmáilov, um mercador bastante mais velho que ela e já viúvo, terá uma vida supostamente conveniente; no entanto, deambula extremamente aborrecida pela casa, com saudades da sua liberdade de infância. Diria que é mais uma Emma Bovary russa que uma Lady Macbeth russa... mas, à data de publicação desta obra, Madame Bovary era ainda um livro recente (Nikolai Leskov e Flaubert eram contemporâneos um do outro). Isso e, apesar de tudo, Emma não tinha a perfidez que veio a revelar Katerina. Katerina quer engravidar (algo para que o seu sogro a pressiona constantemente), para ter um propósito na sua vida, um entretém, mas, seis anos volvidos do casamento, isso não aconteceu ainda; por essa altura, o marido vai tratar de negócios para a cidade.

(...) e Katerina Lhvóvna, coitadinha, ficou a penar em casa o dia inteiro, sozinha. No início, sem o marido, era ainda mais entediante para ela, mas depois até pareceu ser melhor; sozinha, sentiu-se mais livre.

Eventualmente, Katerina encontra o capataz do marido, Serguei, um conquistador que a provoca e força encontros com ela. De certa forma, parece um predador.

- Vim ter consigo, Katerina Ilhvóvna, para lhe pedir se não tem um livrinho qualquer para ler. O aborrecimento apoderou-se muito de mim.
- Eu não tenho nenhuns livros, Serguei; eu não os leio - respondeu Katerina Lhvóvna.

Rapidamente, o aborrecimento dos dois empurrou-os para os braços um do outro, tornando-se amantes na ausência do mercador. Quase parece que Katerina aguardava apenas uma oportunidade para poder sair do enfado da sua vida, um pouco como Emma. A sua cozinheira sabia do caso, e parecia apoiá-los (ou teria medo de alguma coisa?), apesar de alertar a patroa para a fama de mulherengo do amante. No entanto, o sogro de Katerina, Borís, vivia na mesma casa, e rapidamente se apercebeu do sucedido, vendo-se obrigado a tomar medidas para não sujar o nome da família.

- Passaste a noite no quarto da minha nora?

Mas Katerina Lhvóvna está apaixonada, e fará tudo para manter a sua relação com Serguei. E é aqui que entra numa espiral de crimes e sonhos com gatos.

E o gato, fazendo ronrom junto ao ouvido dela, encostou o focinho e pronunciou claramente: "Um gato, eu?", diz. "Por que razão? Tu, Katerina Lhvóvna, pensas muito bem que eu não sou nada um gato, pois eu sou o renomado mercador Borís Timofeitch. Só que, agora, eu estou mal, porque, dentro de mim, todas as minhas tripas se desfizeram com a oferta da minha norinha. Por isso", ronrona, "fiquei assim todo encolhido e agora apareço como um gato àqueles que pouco entendem de mim, sobre o que eu sou na realidade. Então como é que, agora, te está a correr a vida, Katerina Lhvóvna? Como é que cumpres fielmente a tua lei? Eu vim de propósito do cemitério, para ver como tu e o Serguei Filipytch aquecem a caminha do teu marido. Ronrom, eu não vejo nada. Não tenhas medo de mim. Como vês, com a tua oferta, os meus olhinhos caíram. Olha-me só para os olhos, amiguinha, não tenhas medo!"

E é por estes crimes que ela é a "Lady Macbeth"; mas comparemos as duas. Lady Macbeth é uma força do mal, que encoraja e atiça o seu marido até ele fazer o que ela pretende, que se arrepende apenas quando se apercebe que o marido já a ultrapassou e está para além do seu controlo; já Katerina é uma personagem trágica, presa num casamento sem amor e num aborrecimento sem fim, cega pela sua paixão por Serguei. Lady Macbeth quer lavar as mãos e não consegue, mas Katerina nunca parece sentir o arrependimento; e os crimes que comete são em nome desta cegueira. São, até, subtilmente incentivados e encorajados por Serguei, também ele extremamente cruel. Embora Katerina não seja inocente, ela parece ser apenas o instrumento nos crimes.

E por falar em instrumento: vejamos que, à época, as mulheres eram pouco mais do que objectos. Katerina passa da sua família para o seu marido, sem escolha, como se de um bem se tratasse. O sogro tenta controlá-la, sendo ela praticamente prisioneira na sua própria casa, enquanto aguarda que algo aconteça. Mesmo Serguei a vê como um objecto, embora ela não o perceba muito bem, sendo isto particularmente visível quando ele fala do seu estatuto inferior ao dela:

Katerina Lhvóvna ficou toldada com essas palavras de Serguei, com esse ciúme, com esse seu desejo de casar com ela, um desejo que é sempre agradável a uma mulher, mesmo tendo a mais íntima relação com a pessoa antes do casamento. Por Serguei, Katerina Lhvóvna estava agora pronta a ir para o fogo, a água, a prisão e a cruz. Ele fez com que ela o amasse a tal ponto que não havia nenhuma medida para a sua dedicação por ele. Ela enlouqueceu com a sua felicidade; o seu sangue fervia, e não podia ouvir mais nada. Ela tapou rapidamente a boca de Serguei com a palma da mão e, apertando contra o seu peito a cabeça dele, começou a falar.
- Pois bem, eu sei como hei-de fazer-te mercador, e vou viver contigo como deve ser. Só não me entristeças com coisas vãs enquanto o nosso assunto não chegar até nós.

Poderemos entender Katerina como uma vítima da sociedade russa, opressiva, onde esperavam dela um certo comportamento, uma certa vida, obediência e submissão? Katerina não é bonita, não é inteligente, não tem grande educação, mas parece um produto de uma Rússia feudal onde não tem noção da sua própria crueldade. E talvez seja por isto que, ao contrário de Lady Macbeth, não sente necessidade de lavar as mãos do sangue que provocou.

O final torna claro que, não obstante o resto e as acções que acabou por tomar, Katerina foi vítima de uma paixão perigosa que tomou como verdadeiro amor. A forma como Serguei a trata no final, entre gozo e maus tratos, é deplorável e devastadora - mas mostra-nos que ela foi, no fundo, vítima de si mesma, o que é profundamente triste. O livro termina numa nota que dá a entender um desperdício completo da vida de Katerina. E não parece que tenha valido a pena.

- E tu, Katerina Ilhvóvna, ouve - disse Serguei no dia seguinte, já no caminho - Tu, por favor, compreende que eu, em primeiro lugar, não sou Zinovi Borissytch, e que, por outro lado, tu agora não és uma grande mercadora. Portanto, não fervas, faz a mercê. Cornos de cabra não entram no nosso negócio.

PS: gosto mais da Katerina que da Emma. Lamento.

4/5

Livro infelizmente indisponível em português. Mas podem comprar em inglês aqui.

Comentários

  1. Nunca tinha ouvido falar mas fiquei bem tentada a ler! Beijinhos*

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    1. É muito curto, muito interessante, e está facilmente disponível em inglês ou nas bibliotecas de Lisboa! :) beijinhos!

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  2. Eish onde é que isso já vai, a tal ante-estreia do filme :p neste caso não foste por minha culpa e por isso mais uma vez te devo um pedido de desculpas mas tenho o filme para vermos!
    'sentei-me com ele numa poltrona e acabei em pouco mais de uma hora.' clássico Babetes :p
    'E é aqui que entra numa espiral de crimes e sonhos com gatos.' makes sense
    Gostei muito deste post, muito curioso agora com o filme já que o tenho aqui para vermos mas principalmente com o livro! Como é da biblioteca hei de lá ir um dia requisitar
    Não li o Madame Bovary nem este livro mas quero muito ler ambos

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    1. Temos de ver embora ache que o filme tira o vibe russo da história :$
      Oh :$
      Haha, sabes que gosto de meter coisas assim meio absurdas com um certo toque de "quem nunca?" :$ neste caso, o sonho com o gato!
      Recomendo a rede de bibliotecas de Lisboa, e relembro que, se tudo o resto falhar, te meti como segundo titular do meu cartão :p irás ler ambos, é só quereres :p

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  3. Ouvi falar deste livro pela primeira vez num canal de um Booktuber mexicano, imagina, que o adorou e, depois, de um canadiano que vive no Japão, que também o aconselhou. E agora tem também o teu aval em terras lusitanas, por isso, é para requisitar em breve. E a minha lista da biblioteca é tão, tão pequenina...:-)
    Paula

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    1. Paula, já me tinhas mencionado a tua curiosidade quanto a esta obra - não sabia é o quão "viajada" era a recomendação! :)
      Este livro é possivelmente mais pequeno que a tua lista da biblioteca, é realmente curto e lê-se bastante rápido - não criará grande mossa!

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  4. Adoro vir ao teu blog procurar títulos menos conhecidos e encontrá-los! Por acaso também fiquei a conhecer o livro por causa do filme, mas no meu caso vi o filme primeiro e o livro foi lido depois. Curioso, também estabeleci essa relação com a Bovary ;)
    Este é um livro perverso, mas fiquei absolutamente fascinada. Ainda consegui comprar a edição traduzida quando estava esgotadíssima em tudo o que era site online.
    O filme é muito bom também, aconselho!

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    1. Passado todo este tempo, ainda não vi o filme! Tenho enorme curiosidade. Entretanto, já li outra obra curta do Leskov e também gostei.

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