Vi Picnic at Hanging Rock há uns bons anos, e a história tinha-me ficado sempre marcada.
Mais pelas imagens do filme, talvez - na verdade, não me recordava totalmente da história, apenas das imagens quase-de-sonho, a música misteriosa, as sequências, os cisnes, o Botticelli -; mas a vontade de ler este pequeno clássico australiano tinha ficado, sempre. Ao passo que (do que me lembro), o filme não incluiu algumas cenas e personagens menores, este é bastante fiel e um bom retrato do livro.
A sensação de mistério, de angústia, de confusão, de assombro permeia também o livro. É difícil de explicar - um mistério deveria ter sempre uma explicação, não é? -, mas o livro transmite, acima de tudo, uma sensação.
É o dia 14 de Fevereiro de 1900, e está um belo dia de verão. Logo este conceito é algo confuso para o leitor do hemisfério Norte, mas estamos na Austrália, um país de contrastes, com a sua natureza hostil e o legado do colonizador, da Commonwealth, da Inglaterra vitoriana com os seus costumes. Mas, repito, é um bonito dia de versão e um grupo de raparigas do colégio interno Mrs. Appleyard College for Girls aproveitam para fazer um piquenique perto de Hanging Rock. Hanging Rock é uma formação rochosa vulcânica perto de Melbourne, e há um quadro, de William Ford, intitulado Picnic at Hanging Rock, que é mencionado casualmente no livro.
Na escola, para trás, fica Sara Waybourne, a mais nova, detestada por Mrs. Appleyard pelo seu "espírito livre", que é como quem diz, por ser órfã e negar decorar poemas que não lhe interessam (The Wreck of the Hesperus). No passeio, vão Miranda, beleza etérea saída de um quadro do Boticcelli, Marion Quade, inteligente e estudiosa, Irma Leopold, riquíssima, filha de um governador da Índia, Edith Horton, a idiota da escola, Greta McCraw, a professora de matemática, Diane de Poitiers, a professora francesa, entre outras alunas, levadas por Ben Hussey, o dono dos estábulos da cidade.
Sometimes just to look at Miranda’s calm oval face and straight corn-yellow hair gave her a sharp little stab of pleasure.
A viagem é longa e as horas têm de ser bem reguladas para voltarem ao colégio na hora prometida; quando os relógios das pessoas que os levaram param, ninguém questiona particularmente. Quando o sono se apodera de todos os presentes, idem. E quando Miranda, Marion Quade, Edith Horton e Irma Leopold decidem ir explorar Hanging Rock, as professoras acham-nas ajuizadas o suficiente para não se afastarem muito. No caminho, as raparigas passam pelo Hon. Michael Fitzhubert, jovem nobre inglês que se encontra a visitar os tios, e o seu cocheiro, Albert Crundall. Fitzhubert fica maravilhado com a beleza de Miranda, que o marca profundamente (mais que os comentários sexistas do companheiro).
Horas mais tarde, quando Diane de Poitiers e as alunas despertam do sono bizarro, as raparigas não voltaram ainda - e Ms. McCraw desapareceu também. Edith acaba por reaparecer, em pânico nem sabe bem porquê, dizendo ter passado por Ms. McCraw e não ter percebido onde ela ia, nem os seus preparos, com um enorme lapso de memória que não lhe permite dar qualquer esclarecimento sobre o sucedido. O desapareciemento ocorre no início do livro, e a partir daqui a narrativa centra-se nos eventos após o desaparecimento das raparigas e da professora, bem como as investigações em torno dos misteriosos desaparecimentos, que acabam por desvendar alguns segredos, mas trazem poucas respostas. Michael e Albert foram os últimos a ver as raparigas.
Atrás da aparente simplicidade do livro, que prende não só através do mistério mas das várias camadas de acontecimentos que são espoletados pela desgraça do que deveria ter sido uma tarde relaxante, o livro traz-nos o contraste entre a alta sociedade britânica e as colónias, com o seu cenário inóspito e hostil. Nunca estive na Austrália, mas Joan Lindsay confere uma sensação de isolamento geográfico, de estranheza, de distância, de impotência perante uma terra que não perdoa - mas na qual a Inglaterra se impôs, criando uma tensão entre humanidade e natureza. Talvez o livro não funcionasse num outro ambiente, onde não houvesse o mesmo tipo de opressão, de medo, de sensação de falta de pertença.
Although we are necessarily concerned, in a chronicle of events, with physical action by the light of day, history suggests that the human spirit wanders farthest in the silent hours between midnight and dawn. Those dark fruitful hours, seldom recorded, whose secret flowerings breed peace and war, loves and hates, the crowning or uncrowning of heads.
Ao passo que o livro não nos oferece qualquer resolução para o mistério (o que pode ser insatisfatório para alguns leitores - eu gosto do puzzle sem resolução, das inúmeras possibilidades e teorias que se abrem perante o leitor), a verdade Joan Lindsay escreveu um capítulo final que foi recomendado ser excluído da versão final do livro, no qual oferece uma explicação para os desaparecimentos. Através da internet, tive acesso a este capítulo. Apesar de o ter lido, confesso que prefiro ignorar a sua existência. Prefiro manter o mistério por resolver.
A tragédia mudará sempre as vidas que toca, não obstante ser um mistério ou algo cujas causas sabemos, é certo, mas creio que o livro se mantém relevante precisamente pela ambiguidade do que acontece, por podermos tentar criar teorias sobre os destinos das raparigas e da professora desaparecidas, mais ou menos plausíveis. Tal como na vida real, onde pessoas desaparecem sem deixar rasto, sem se compreender como, afectando várias pessoas ao seu redor para sempre.
Sem resolução, ressoa, permanece.
4/5
Podem comprar uma outra edição em inglês na wook ou na Bertrand. Aparentemente, não se encontra disponível em português.
Tentei lê-lo há uns anos, mas estava a perder-me eu logo no início! Muitas meninas e professoras talvez. Hei-de dar uma nova oportunidade, sendo tão pequenino.
ResponderEliminarUm bom ano novo, Bárbara!
Paula
se tiveres oportunidade, vê o filme também! há umas quantas meninas e professoras e acho que pode, mesmo, ser confuso nesse aspecto. consta que há uma série mais ou menos recente, que é má. o livro é estranho num bom sentido e, sim, curto :) bom ano!!
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