Um dos livros mais difíceis de explicar que li no último tempos.
Freshwater é uma obra cheia de camadas que parecem nem sempre encaixar, caber, coincidir. É a história de Ada, que, quando nasce, tem vários ogbanje presos no seu corpo. Ada é uma jovem nigeriana cuja identidade se encontra por isso fracturada, em cuja "mente", uma sala de mármore, vive não só ela, mas vários deuses, espíritos, ogbanje, que se encontram presos a ela, talvez por erro, porque por que motivo deuses quereriam estar num corpo mortal?
It’s not easy to persuade a human to end their life – they’re very attached to it, even when it makes them miserable, and Ada was no different. But it’s not the decision to cross back that’s difficult; it’s the crossing itself.
O livro é maioritariamente narrado por estes espíritos que, apesar de externos a Ada, a habitam. Estes espíritos têm vontades próprias, não estão habituados a vidas mortais, a formas físicas, e, de forma mais ou menos activa, parecem puxar pelo mais negativo que há em Ada, pela maldade, pela tristeza, pelo que de pior habita nela, e são de uma enorme violência emocional. O livro retrata muito bem os efeitos psicológicos profundos do trauma, especialmente quando um evento, numa faculdade em Virginia, dispersa ainda mais a sua personalidade já fragmentada.
Let me tell you now, I loved her because in the moment of her devastation, the moment she lost her mind, that girl reached for me so hard that she went completely mad, and I loved her because when I flooded through, she spread herself open and took me in without hesitation, bawling and broken, she absorbed me fiercely, all the way; she denied me nothing. I loved her because she gave me a name.
Muita dor, muito sentimento. Ada luta consigo própria, com os seus outros "eus", com a religião com a qual não se consegue conectar, na imagem de Jesus, em busca do seu equilíbrio, no meio da auto-destruição. Ada sabe que algo em si está mal, sabe que quer mudar, quer melhorar, mas as outras personalidades em si não lho permitem, não a deixam dominar. A voz de Ada é, no meio desta confusão interior (e na narrativa do livro), minoritária e nunca dominante.
Devido aos múltiplos narradores (que habitam um só corpo), a narrativa, embora cronológica, não é linear, o desenvolvimento dos personagens (especialmente de Ada) não é progressivo. Ada tem altos e baixos, momentos de enorme euforia e enorme depressão, momentos de incongruência, porque Ada (o corpo, pelo menos) é humana, tem falhas, nem sempre faz as coisas bem, é vulnerável, muito.
We understood. It is like we said: when gods awaken in you, sometimes you carve yourself up to satisfy them.
Ainda mais complicado: Freshwater é semi-autobiográfico. O foco principal de Emezi é a espiritualidade Igbo tradicional, com a qual não estou familiarizada, mas pode ser interpretado também do ponto de vista dos distúrbios psicológicos e psiquiátricos, se entendermos as várias personalidades dentro de Ada não como ogbanje (espíritos presos), como filhos de divindades, mas como reacções cada vez mais complexas ao trauma. Freshwater não é sobre a vida de Ada, sobre as suas experiências no mundo, não é sobre as dores da adolescência ou uma metáfora sobre os nossos conflitos internos, pessoais, não obstante tratar a sua relação interna com as suas outras personalidades.
Será talvez sobre identidade, sobre a divisão do próprio, seja esta resultante de uma identidade de género não-binária, de trauma, ou por haver espíritos vários a habitar na mente. Será que a causa é assim tão relevante, quando o efeito é o mesmo? Leia-se talvez de espírito aberto, como uma forma diferente de ver o mundo, com uma outra espiritualidade, uma outra mitologia.
(não entendi o título)
5/5
Há uma outra edição em inglês na wook ou na Bertrand, que aparece esgotada; infelizmente não traduzido para português.
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