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Severance

Severance, de Ling Ma, foi um livro talvez atípico nas minhas leituras mas para o qual eu tinha enormes expectativas.



Isto pode soar contraditório, e bem compreendo que soe - talvez mais bizarro ainda, li a descrição do livro quando andava a ver iZombie, série que adorei (há muito low brow neste blog, se forem procurar com atenção), pelo que a ideia me fascinou de imediato. A capa norte-americana, cor-de-rosa, apelou-me mais do que esta, mas é o que temos por viver na Europa não obstante o Brexit.

Em grande resumo: ficção pós-apocalíptica com ponto de vista de imigrante asiático a tentar integrar-se numa cultura capitalista-millenial-coiso. Talvez seja este o meu grande problema com esta leitura, que acabou por se revelar mediana - tentou ser demasiadas coisas ao mesmo tempo.

Agora, em mais detalhe.

Candace Chen, nascida na China, filha de imigrantes chineses que a conseguiram trazer para os Estados Unidos, típicos imigrantes que tinham empregos muito mais promissores no seu país natal que, não obstante, tinha pouco para lhes oferecer. Com a morte precoce dos pais, Candace perdeu contacto com a restante família (ainda na China), perdeu raízes, e vivia uma vida igualmente desprendida em NYC, tendo criado um blog (diria que uma espécie de tumblr) em que partilhava fotos da cidade. Arranja um emprego numa editora de livros, na qual ajuda a produzir Bíblias, vai algumas vezes à China em trabalho (muita da produção é lá), mas não sente mais a relação com o seu país.

The past is a black hole, cut into the present day like a wound, and if you come too close, you can get sucked in. You have to keep moving.

O livro explora a vida e as memórias do passado de Candace, incluindo a relação com o namorado, que acabou há relativamente pouco tempo - e relativamente pouco tempo antes da pandemia da Shen Fever, uma espécie de doença, um fungo e não um vírus, que transforma as pessoas em zombies de forma irreversível, que levou o mundo inteiro a confinamento. Parece tipicamente covid, embora tenha sido escrito algum tempo antes.

Candace é das aparentes poucas pessoas imeune, e junta-se a um grupo de sobreviventes, liderado por um homem chamado Bob, que os leva para a "Facility". Os contagiados com a Shen Fever são apelidados de "fevered" e estão ou mortos, ou a morrer, presos em rotinas absurdas sem significado até que o seu corpo desista (zombies não violentos, sem fome de cérebros).

Acho que a banalidade e monotonia da vida - exacerbada pelos "fevered" que se prendem em rotinas sem significado - é a parte do livro com que mais facilmente me relacionei, apesar de o comentário das pessoas robotizadas, obcecadas com o consumo, com a tecnologia, e com o nada, esteja um pouco gasto; gostei também da camada extra da experiência imigrante, da forma como Candace não sentia pertença, e como a sua não-pertença a levou a não se preocupar particularmente com a forma como a Shen Fever afectava o que a rodeava, e quem a rodeava.

Memories beget memories. Shen fever being a disease of remembering, the fevered are trapped indefinitely in their memories. But what is the difference between the fevered and us? Because I remember too, I remember perfectly. My memories replay, unprompted, on repeat. And our days, like theirs, continue in an infinite loop.

Porém, e novamente, o livro tentou abordar demasiadas questões ao mesmo tempo e sinto que não concluiu nenhuma. Gostaria de ter sabido mais da relação de Candace com os pais, a mãe infeliz porque achava que a felicidade estava na sua Fuzhou natal, e a visão que Candace, mais tarde, e através da sua vida profissional, poderia ter tido sobre a China, o local onde as Bíblias nas quais ela trabalhava eram produzidas em massa, de forma barata.

A Shen Fever é apresentada como uma doença à qual alguns são, quase acidentalmente, imunes (da mesma forma que em Station Eleven), mas apesar da sua elevada taxa de contágio e 100% de mortalidade, não me interessou particularmente. Station Eleven, por exemplo, focou-se muito mais nas vidas imediatamente antes e nos vários anos após o colapso civilizacional, enquanto que Severance se foca mais no imediatamente após - mas Bob e o seu grupo não são particularmente cativantes, não para mim (o Bob daria um óptimo líder de culto).

Leisure, the problem with the modern condition was the dearth of leisure. And finally, it took a force of nature to interrupt our routines. We just wanted to hit the reset button. We just wanted to feel flush with time to do things of no quantifiable value, our hopeful side pursuits like writing or drawing or something, something other than what we did for money.

Muitas perguntas ficam por responder, e sinto que o livro arrastou muito certas partes e teria beneficiado de se focar em menos coisas, ou focar menos em certas partes. Julgo que a parte mais forte da obra se prende com a experiência imigrante de Candace e dos seus pais, e leria um livro da autora que entrasse mais por esse prisma.

3/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand; não está traduzido para português


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