Avançar para o conteúdo principal

Station Eleven

Ler sobre uma espécie de fim do mundo causada por uma pandemia?



Não vi o Contágio em Março de 2020 na HBO com o resto das pessoas (tinha visto no cinema) nem li A Peste do Camus no ano passado, quando toda a gente o fez. No entanto, e não sendo (longe disso!) leitora ávida de ficção científica, queria mesmo ler este livro.


Station Eleven começa com a morte de Arthur Leander, um actor famoso que queria dar uma volta à sua vida e carreira, em pleno palco, enquanto está a representar King Lear. Ao mesmo tempo, uma epidemia de gripe (a Georgia Flu) está a espalhar-se muito rapidamente ao longo de todo o mundo: contágio é extremamente fácil - bastará passar segundos ao pé de uma pessoa; o período de incubação é quase existente, e os sintomas são letais.


Assim, numa questão de dias, semanas, 99,6% da população mundial terá morrido. Não foi a carreira de Arthur Leander que sofreu um reset, foi a humanidade, a ideia de civilização. Os meios de comunicação desapareceram - tudo o que era considerado essencial, é agora inútil. Aos 0,4% restantes, resta sobreviver.


Survival is insufficient.


A narrativa do livro salta no tempo, entre um período antes de o mundo ter sido assolado pela Georgia Flu e o presente, o "ano 20" depois do fim da civilização. Foca-se numa série de personagens distintos, Arthur Leander e outras pessoas que, de algum modo, estavam ligadas a ele - Kirsten, que tinha oito anos e o viu morrer no palco, por exemplo, ou Jeevan, que, momentos antes do cataclisma, tinha pensado tornar-se paramédico e ajudar os outros, deixando para trás uma carreira indigna como papparazzo. 


Kirsten acaba por ser uma das personagens centrais do livro, a par de Arhur, tendo sobrevivido por mero acaso (como todos os sobreviventes, no fundo - por sorte, por acaso, por capacidade de adaptação) e tendo-se juntado à Travelling Symphony, uma companhia de teatro viajante que vai de cidade em cidade para actuar e levar um pouco de magia aos sobreviventes, aos que nasceram depois do fim da civilização, em forma de Shakespeare.


Gosto deste tipo de livro, em que não sabemos, desde o início, a ligação entre os vários personagens e que permitem ao leitor ir fazendo ligações ao longo da leitura. Parece-me também um retrato honesto e plausível do que a humanidade faria perante uma crise semelhante, e pega em muitos medos normais e comuns sem exagerar.


Pegando em vários personagens - o grupo Shakespeareano, o actor numa fase crítica da sua vida, as suas ex-mulheres... - o livro acaba por não ser sobre uma narrativa, mas sobre uma experiência, um sentimento, sobre pessoas a viver em circunstâncias extremas (e como há dificuldades num mundo pré-e pós-pandémico/apocalíptico/como se lhe quiser chamar). Emily St John Mandel consegue interligar o futuro e o passado, e Arthur Leander, cuja vida em muito antecedia a de Kirsten continua a viver através dela.


A sobrevivência é insuficiente - o sentimento de pertença ao mundo é diferente após a tábua rasa que esta pandemia faz do mundo, há demasiadas pessoas que faltam - e demasiado de nós que se perde com cada perda. A sobrevivência torna-se difícil, dolorosa, não só pelo novo mundo árduo, mas pelo que implica para cada um.


Shakespeare, no entanto, sobrevive.


Civilization in Year Twenty was an archipelago of small towns. These towns had fought off ferals, buried their neighbors, lived and died and suffered together in the blood-drenched years just after the collapse, survived against unspeakable odds and then only by holding together into the calm...


Do que é que sentiríamos falta no apocalipse? De quem? Com o fim dos automóveis, dos aviões, com o colapso do movimento do mundo, a partilha global de informação e de cultura morre. O contacto com o próximo (que esteja um pouco mais distante) morre. Mas não é árido, desesperado, este futuro pós-pandémico. A sobrevivência é insuficiente sem esperança, sem beleza, sem música, sem Shakespeare. A sobrevivência, em si, não é a única coisa que interessa.


5/5


Podem comprar edição física na wook ou na Bertrandou em português, também na wook ou na Bertrand



Comentários

  1. Fico feliz por teres gostado, porque está na minha wishlist há anos e nunca lhe cheguei a pegar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. adorei! espero que gostes também. acho que quem for à procura de um livro de sci fi puro e duro (distopia, etc) não o vai encontrar, mas acredito que não seja bem essa a tua expectativa :)

      Eliminar
  2. Boooomba, un movimiento muy sexy, libro guapo

    ResponderEliminar
  3. tendo em conta a minha apreciação pelo clássico do King Africa, não sei se este comentário é a sério. de qualquer modo, obrigada.

    ResponderEliminar
  4. Já li três livros desta autora, sendo o meu preferido, o Last Night on Montreal, mas este ainda está ali intacto. Ainda não estou preparada para o apocalipse fora àquele em que vivemos e não li nem A Peste nem o Véu Pintado do Maugham, nada que tenha doenças contagiosas para mim, muito obrigada. Sou fraquinha! :-)
    Paula

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. nunca li mais nada da autora, mas vou anotar esse, sem dúvida; quanto à "georgia flu", serve aqui apenas de catalista dos eventos futuros, mas eu também quero distância das contagiosas, mais não seja porque sou de constituição fraca :) portanto compreendo a reticência em lhe pegar nesta altura

      Eliminar

Enviar um comentário