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Caruncho

Li Caruncho, de Layla Martínez, para o clube de leitura do podcast Livrólicos Anónimos, que ajudei a dinamizar em Setembro.



Caruncho, Carcoma em espanhol, num double-entendre dado que "carcoma" significa não só térmitas mas ansiedade, algo que também corrói, traz-nos quatro gerações de mulheres, presas a uma casa de fantasmas, velha, corroída, corrupta, uma casa da qual lhes é impossível escapar, onde os homens desaparecem. No início do livro, a neta volta a casa após uma ausência que, sabia, nunca seria eterna:

Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras, mas a minha mãe saiu daqui há muito tempo e não me lembro dela.

Aquilo que pode parecer figurado, sobre a casa, rapidamente acaba por mudar de tom, parecendo-nos que os estados emocionais das personagens que lá habitam se manifestam pelos objectos, de forma sobrenatural - a casa não é só um personagem enquanto lugar físico, mas enquanto manifestação de raiva reprimida (muita, muita raiva, muito rancor), esqueletos no armário talvez mais literais do que esperamos, uma casa de segredos (pun não intencional).

A narrativa alterna, entre capítulos, entre a primeira pessoa da neta, que chegara a casa, e a da avó, "a velha", ambas sem nome, seja porque poderiam ser quaisquer duas mulheres numa Espanha rural que nem a própria Espanha já conhece, seja porque, dada a sua pobreza, são irrelevantes, desmerecedoras de nome. Os nomes neste livro, são, aliás, poucos - temos a família mais rica da aldeia, os Jarabo, com quem esta família tem uma espécie de feud de décadas, intergeracional, e a Emilia, que nunca vemos nem conhecemos, temos apenas "o marido da Emilia", também ele desprovido de nome, uma entidade.

A velha conta-nos não só sobre a neta ("Também devia ter dado uma boa pisadela à minha neta, mais do que uma vez. Ou uma bela bofetada. Devia ter-lhe arrancado o que traz dentro dela antes que se enraizasse e se lhe agarrasse às entranhas. (...) Agora é demasiado tarde, soube-o no dia em que começou a trabalhar para os Jarabos."), numa voz que por vezes é difícil de distinguir enquanto sua, mas sobre a casa, a história da família, a sua mãe, a sua filha. A raiz da miséria da família parece ser o pai da velha, que construiu a casa com dinheiro ganho à custa do proxenetismo, aprisionando algumas mulheres para as escravizar, construindo esta casa como prisão para aprisionar a sua esposa, transformando esta (bem como a casa) num conjunto de sombras cheio de ódio.

A raiva que as mulheres desta família carregam, que direccionam uma às outras, é primordialmente contra homens e maridos abusivos, mas também uma raiva de classe, de resposta ao desdém das famílias ricas da zona, nomeadamente os Jarabo, para quem a avó tinha trabalhado em tempos e para quem a neta agora tinha trabalhado, única opção de carreira numa aldeia da qual não têm dinheiro para sair, mesmo que a casa não as prendesse.

A família é isto, um sítio onde nos dão tecto e comida em troca de estarmos presas com um punhado de vivos e outro de mortos. Todas as famílias têm os seus mortos debaixo das camas, a diferença é que nós vemos os nossos, já dizia a minha mãe. 

Quando a velha e a neta se vingam dos homens que vêm como origem do seu mal actual, não é fácil compreender o resultado desta vingança que é na verdade uma visão mística de justiça, da justiça à qual nunca teriam acesso pelas vias tradicionais de um Estado democrático de direito. Será que conseguiram algo daqui, sem ser uma maior desconfiança por parte dos locais, um maior isolamento, uma maior pobreza agora que a neta não tem mais emprego?

A velha sempre acreditara que o ódio dos Jarabos era uma quezília entre famílias daquelas que se enquistam e enquistam e se abrem em ferida sem fazer crosta mas não era verdade. Os Jarabos não eram piores do que todos os outros que são como eles e não nos odiavam mais do que odeiam a qualquer um dos que são como nós. (...) Mas detestam-nos a todos por igual sentem o mesmo asco por todos nós e esse asco toma conta de nós e envenena-nos e trazemo-lo num lugar tão profundo que acabamos por pensar que é nosso mas não é.

Pode-se dizer que é a casa, o seu peso, a sua história, o que representa - a pobreza e a opressão, as sombras que projectam e o rancor e raiva que criam - que oprimem realmente avó e neta. A casa lança-se sobre quem lá entre, diz a neta no início do livro, oprime, asfixia, "rouba" elementos ao terror clássico e tem tanta vida quanto personagens de carne e osso, misturando-se com o folclore mais tipicamente espanhol da religião, superstições e da bruxaria, como única forma que estas mulheres podem responder à violência que sofrem, ao poder dos "senhores", à sua invisibilidade.

Caruncho fala de um passado não tão distante assim, que se tenta esquecer mas que há quem não o possa fazer. É um olhar muito interessante sobre família, classe, papéis de género, inveja e vingança. Mas não sabemos, no fim, quem é que a vingança castiga realmente, se os resultados são realmente os que eram esperados.

Tradução de Guilherme Pires

5/5

Podem comprar esta edição na wook.


Comentários

  1. Excelente análise, comme d'habitude🤓 Não é livro para mim por motivos que aqui não interessam (e por isso fui buscá-lo à BLX em vez de o comprar), mas achei-o realmente bem construído. Embora nos faça recordar o "We Have Always Lived in the Castle" e, em certa medida, também o "Limpa" (Alia Trabucco Zerán) por também tratar de ódios de classe e ter uma protagonista que "limpa" casas, não deixa te ser original e contar a sua própria história.

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    1. Compreendo perfeitamente que não seja para qualquer um (também me é difícil, enquanto pessoa extremamente literal, conceber muitas das coisas que aqui estão escritas, embora não ao ponto em que não tenha apreciado o livro). Não li o "Limpa"! Mas li o da Shirley Jackson, que de facto fala como a doença mental e o ostracismo popular prendem uma família à sua casa, mais ainda após uma desgraça. Suponho que ter um bisavô proxeneta seja uma herança familiar complicada de aceitar.

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