Avançar para o conteúdo principal

O vale da paixão

"Deixo à minha sobrinha, por única herança, esta manta de soldado".


Foi a primeira vez que li Lídia Jorge e fiquei agradavelmente surpreendida. Um livro em torno de mistérios familiares, do ponto de vista de uma rapariga a crescer entre as décadas de 1950 e 1980, foi algo reminiscente dos livros de Alice Vieira que rechearam a minha infância, mas numa versão para adultos.

Passada em São Sebastião de Valmares, algures no Algarve, a narrativa, sem cronologia condutora, centra-se na visita que a narradora, sem nome conhecido, recebe do seu tio, Walter Glória Dias, que é na verdade seu pai. É uma noite de chuva em 1963 e Walter tira os sapatos para entrar no quarto da sua filha, com quem conversa pela primeira vez, sem que ninguém ouça nada. Por vezes referida como "a sobrinha de Walter", outras vezes como "a filha de Walter", a narradora entra numa reflexão sobre as suas raízes e sobre quem realmente fora o seu pai.

Pois tudo o que a filha de Walter sabe sobre o pai verdadeiro são os rumores e a maledicência da família, do avô, Francisco Dias, dos outros tios, dos empregados; e, como ela nunca fala de volta, eles nunca sabem se ela está a ouvir. Nunca sabem se ela ouve como o seu pai fugia de charrete, desenhava pássaros em vez de trabalhar nas terras do pai como os outros irmãos, que foi ele quem engravidou Maria Ema Baptista em 1948. Que Francisco Dias, com pena da tortura de Maria Ema sob as mãos dos Baptista, pediu a Custódio, seu filho mais velho, coxo, que casasse com a rapariga e fosse pai da criança, já que Walter preferira ir para a Índia com o exército que assumir o que tinha feito. 

A ovelha negra da família, o "trotamundos", como o pai se referia a ele, revolta-se contra o autoritarismo e o atraso na casa da sua família, mas paga ao não ser mais bem vindo em casa, em ser condenado à solidão e à rejeição por toda a família.

Apenas Custódio gostava de Walter, e casou com Maria Ema, protegendo sempre o irmão na sua rebeldia contra o pai e tratando da filha de Walter como se fosse sua. É Custódio o destinatário das cartas de Walter, missivas recheadas de desenhos de pássaros - missivas que passa a Maria Ema, que as passa à filha, que as colecciona, religiosamente. A filha de Walter guarda o seu uniforme de soldado, o seu revólver Smith debaixo do colchão, objectos deixados para trás numa curta visita em 1951 e, assim, nunca se sente sozinha.

Quem estava a mais era eu.

De uma quinta produtiva dos anos 30, temos o retrato do decair não só da propriedade dos Dias mas da própria família, talvez numa alegoria do autoritarismo vivido em Portugal na altura. E, nos anos 50, os irmãos Dias, todos menos Custódio, de perna manca, começam a fugir de Valmares, a ir para as Américas, do Norte e do Sul, num ataque de "sonsidão", fugindo do despotismo do pai, filhos de Francisco Dias a cuidar de vacas, de minas, Francisco Dias envergonhado a pedir que voltem. Apenas Custódio fica, apenas Custódio cuida da casa e da família; e apenas Walter volta.

Mas Walter é um desafio à autoridade do pai, é uma presença perturbadora na calma da vida de Valmares, um elemento de instabilidade. Por que é que Walter regressa? Maria Ema pede à filha que trate Walter por tio, que pactue no silêncio; Walter leva todos a passear de carro, Custódio, Maria Ema, a filha/sobrinha e os três filhos do casal. Até que, um dia, tudo isto, esta felicidade falsa, os desenhos de pássaros, é demais para Maria Ema aguentar, e quase se suicida.

Foi Walter quem a trouxe de volta, quem lhe compôs o casaco, quem a introduziu no carro, quem a retirou do abismo. Daquele abismo. Voltávamos agora de lugares trocados. Diante de nós, ele passava-lhe a mão pelo cabelo, segurava-lhe a mão nas rectas, levava a mão dela sob a dele, na direcção das mudanças. Afagava-a diante de testemunhas. Como se as costas dos bancos onde os dois se sentavam formassem um biombo que os escondia do mundo. O mundo que se sentava atrás. O mundo mudo.

E a presença de Walter torna-se intolerável na casa de Valmares, e tem mais uma vez de partir. Maria Ema entra numa fase quase catatónica. A filha começa-se a envolver com homens vários, à procura da sua identidade, não querendo ser a sombra do pai mulherengo. E Francisco Dias escreve aos filhos espalhados pelo mundo para que regressem, para que metam a casa em ordem, mas os filhos, agora prósperos, donos de negócios, não querem regressar. Dizem que é Walter o único em condições de o fazer, sem nada que o prenda. Não é uma ironia que Walter seja o único que pode regressar, sendo o único indesejado? E os irmãos começam a escrever cartas enormes entre si, após anos de quase silêncio, com rumores sobre Walter, com histórias decadentes sobre o que se passava na vida dele, com a sua antiga manta de soldado onde antes se deitava a desenhar pássaros, onde se deitava com mulheres, onde achavam que se tinha deitado com a filha-sobrinha. Por que outro motivo entraria no quarto dela à noite?

Cartas e mais cartas envenenadas, Walter a manchar a reputação tão arduamente conseguida dos irmãos Dias, Walter endividado, a engravidar raparigas polacas, a defraudar parceiros de negócios, a manchar o nome Dias da mesma maneira que manchava a manta de soldado, o estado em que a manta já não estaria - até que Custódio não abre mais as cartas, e a filha-sobrinha de Walter está furiosa.

Furiosa, a narradora, já uma mulher crescida, que acompanhamos ao longo de todo este tempo, escreve histórias horríveis sobre o pai, de modo a desmistificar o seu passado, os objectos que ele deixou para trás, as memórias. Escreve tudo, para lho poder mostrar.

Lembro-o para que Walter, esta noite, saiba.

A filha de Walter, a sobrinha de Walter, alternando entre estes dois nomes, desprovida de um nome próprio, narra a sua história alternando também entre a primeira e a terceira pessoa. Narra-o sempre para mais tarde poder mostrar ao pai, vai-o afirmando entre capítulos. Mesmo quando ausente da narração, é a sua voz que lemos, despersonalizada, sem saber quem é. Agarrada ao passado, reconstrói a sua história, o legado que o seu pai/tio lhe deixou. Pois, embora tenha sido criada enquanto filha de Custódio, a narradora está sempre consciente da sua origem ilegítima, do seu tio que na verdade não o é, da imagem que constrói dele através dos objectos que ele deixa. É só assim que consegue construir uma identidade.

E as cartas dos tios fecham as várias alternativas a esta identidade, às motivações de Walter. Criam uma nova narrativa para a vida deste, enchendo a filha de raiva, levando-a a procurar o pai, a ir ter com ele em 1983 à Argentina, ao bar que ele possui e a que chamou Los Pájaros, a mostrar-lhe as três narrativas que escreveu sobre ele para se poder vingar dele. Para lho poder mostrar. "O Pintador de Pássaros", "A Charrete do Diabo", "O Soldadinho Fornicador", títulos reminiscentes de tudo o que ela possui dele. Ele manda-a embora, e aí ela repete "espere". Porque fora sempre ele o seu conforto, e é a partir daqui que a imagem de Walter se limpa para ela. Para aceitar as memórias do pai, tem de o confrontar.

Mais tarde, chega, através de uma das irmãs de Custódio, a notícia da morte de Walter, sem qualquer herança a deixar. Bar, dinheiro, casas e carros perdidos. Mas meses depois dessa notícia chega para a narradora um embrulho do próprio Walter e, nesse embrulho, a sua manta de soldado. Uma manta que, em si, não possuía qualquer significado, mas torna-se numa prenda, num legado que permite à filha aceitar finalmente toda a sua história, ao enterrar a manta no quintal.

O vale da paixão é, ao contrário das três histórias que a narradora ofereceu a Walter na Argentina, uma nova história que não o idealiza nem o vê de forma negativa. É uma narrativa não sobre o pai, mas sobre ela mesma, um reescrever da história sob um ponto de vista que ela realmente conhece.

Não é um livro fácil; é triste, e a alternância entre tempos cronológicos e a falta de diálogos torna a história um pouco confusa, repetitiva. Mas é uma história fascinante sobre o construir de uma personalidade através de desenhos de pássaros, conflitos familiares e cartas recebidas de todo o mundo.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Olá!
    Parece ser um livro pequeno, mas com muita história :)
    Beijinhos e boas leituras

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Isaura, essa é uma óptima descrição :) é pequeno mas tem muito para dar!
      Boas leituras, beijinhos!

      Eliminar

Enviar um comentário