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Misoginia e Anti-Feminismo em Fernando Pessoa

Enquanto que o meu novo emprego me retira tempo tradicionalmente ligado à leitura, o meu novo emprego oferece-me uma longuíssima viagem pendular que me fornece tempo suficiente para ter lido esta obra num dia.


Nunca fui particularmente fã de Fernando Pessoa e das suas várias personalidades, perdão, heterónimos, acho-o maçudo. Um enorme símbolo cultural do país, a sua figura presente em canecas e t-shirts de lojas de aeroporto e não só, n'A Brasileira no Chiado.

É engraçado pensar nas figuras proeminentes de Portugal dos últimos cerca de cem anos. Dos dois prémios Nobel, um renegou praticamente a sua nacionalidade e o outro ficou conhecido por lobotomias. Fernando Pessoa era um indivíduo que, do pouco que se aprende na escola, percebemos ser monárquico, fã do Sidónio Pais, quiçá perturbado, e a sua Ofélia. É pouco.

Pessoa era "elitista, classista, muito politically incorrect, mesmo segundo os padrões da sua época".

Esta frase coloca logo uma nova perspectiva a tudo o que se virá a ler. Sabia do Fernando Pessoa sidonista, não sabia do resto das suas ideias políticas e sociais. Este livro lança uma luz sobre algumas dessas ideias, focando-se, como é claro pelo título, nas mulheres. O excerto abaixo pertence a um texto intitulado "Porque é que as mulheres se detestam tanto umas às outras?", o que é uma excelente questão.

Não fallemos d'ellas. O que não existe na mulher normal é o que existe no homem normal - a divisão de interesses, a dispersão de interesses por várias cousas que teem, é verdade, um centro commum, mas esse não é a mulher, como seria de esperar se as actividades mentais dos dois sexos fossem correlativas - não é a mulher mas o proprio homem, elle proprio, atravez do prazer que dá a si-proprio ou da busca do meio (como o dinheiro ou a posição social) que lhe pode dar esse prazer.

Ora! Mulheres não têm interesses que não homens. O propósito da vida de uma mulher é encontrar um homem e tentar ter uns quantos por fora sem que o marido se aperceba. Tudo o mais que lhe interessar é uma degenerescência. Trabalhar especialmente é uma degenerescência, diz ele frequentemente. Ironicamente, li muito do livro na hora de almoço do trabalho.

As mulheres, creanças e povo não teem direito a ter opinião.

Apesar de não gostar da democracia, Fernando Pessoa tinha claramente opiniões bastante helénicas no que respeita a estratificação social e sexualidade. O elitismo é visível, quase tangente, um auto-proclamado super homem Nietzchiano.

Mas admite-se lá que um caixeiro seja pederasta! Que um jornalista tenha perversões sexuaes! D'aqui a pouco aos superiores só resta a castidade absoluta como affirmação sexual da sua superioridade.

Este livro encheu-me de asco, de repulsa, e no entanto soube a pouco. Gostaria de ter compreendido mais as motivações do autor, gostaria de ter tido um insight maior sobre outros escritos, mais conhecidos, de Fernando Pessoa. É desde cedo declarado que não se pretende com o livro destruir a imagem do poeta, mas sim deitar luz sobre uma sua faceta menos conhecida, e o contexto histórico incluído ajuda nessa missão - mas soube a pouco, pouco.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. A Simone de Beauvoir, no volume II do Segundo Sexo, especula sobre essa mesma pergunta (porque é que as mulheres se detestam umas às outras?) e chega mais ou menos à mesma conclusão: que por lhes ter sido incutido desde sempre e desde cedo que pela sua inferioridade, o seu objetivo maior de vida é agradar e prender um homem, todas as outras mulheres são potenciais inimigas. (A resposta dela tem uns laivos muito mais complexos e interessantes que a resposta do Pessoa, que agora não me lembro bem, mas tem que ver com o facto de pertencerem à classe inferior e portanto aspirarem é a agradar a quem pertence à classe superior - os homens. Não conseguem ter amor por elas próprias nem umas pelas outras precisamente por essa inferioridade a que são devotadas. Isto não é inevitável, atenção, mas acho que dá para entender parcialmente certos comportamentos ainda atuais.)

    Anyway, em relação a este livro propriamente dito: sim, 'encheu-me de asco' é provavelmente a melhor descrição do que ele me suscitou também. Com a diferença de que eu admirava muito o Fernando Pessoa, quiçá idolatrava-o um bocadinho. Por isso este livro até foi benvindo, para me ensinar que não há cá ídolos para ninguém, e que até o mundo das artes - que por definição deveria ser mais à frente que o seu próprio tempo - pode ser horrivelmente hostil em relação às mulheres. E francamente neste caso nem se pode dar a desculpa do contexto temporal, já que o Pessoa tinha ideias misóginas muito mais virulentas que muitos autores do seu tempo (penso até que há comparações no livro).

    Deu para destruir o mito de que os génios artísticos/intelectuais/científicos são progressistas humanamente (podem até ser muito tacanhos).

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    Respostas
    1. tenho de ler a simone! a ideia do fernando pessoa soou-me mais a "mulheres não têm nada que fazer na vida sem ser serem taradas atrás de homens". acho que ele nem respondeu à sua própria questão... quanto a mulheres se odiarem umas às outras por essa "inferioridade", faz-me todo o sentido - até porque, se virmos bem, a maioria das pessoas que está mal com a vida tenta fazer os outros sentir-se mal como forma de compensação. e acho que ainda nos é muito ensinado, enquanto mulheres, que temos de agradar. não só a homens, mas a toda a gente.

      há comparações sim, mesmo com políticos portugueses seus contemporâneos na questão do sufrágio. ele era incrivelmente retrógrado e acima de tudo misógino, com as suas conversas sobre "sujidade", "sexo sujo" e afins.

      há muita história de génio artístico que era/é péssima pessoa :( o roman polanski para mim está num topo dessa lista... e a whoopi goldberg associada a ele... a senhora que escreveu as brumas de avalon, muitos celebrados do século xx que eram nazis ou anti-semitas (woolf incluída), o flaubert roçava a pedofilia! mas as pessoas lembram-se é de o hemingway ter tido não sei quantas esposas e ser alcoólico

      somos todos humanos e como tal todos propensos a ser seres humanos horríveis, o que não é um consolo...

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    2. Sim, às vezes as ideias dele chegam a ser tão ridículas que parece que se está a esforçar demais para simplesmente ir completamente contra a corrente do seu tempo (a 1ª República foi bastante progressista na questão dos direitos das mulheres, apesar de tudo).

      Isso da sujidade, sexo sujo e não sei quê seria muito bem explicado pelo Freud (olha, outro misógino muito especial!). O Pessoa claramente tinha issues.

      Xiii, agora com essa lista de génios humanamente repreensíveis abriste uma caixa de pandora. Quero muito ler sobre isso! (e nãããão, Marion Zimmer Bradley e Virginia Woolf nãããão, por favor :(((( ) O problema é que tenho muita dificuldade em separar o ser humano da obra, por isso às tantas será preferível não saber...

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