Avançar para o conteúdo principal

Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

Mais Mia Couto, numa review com quase 20 dias de atraso, de um livro com um título do qual nunca me lembro como deve ser (digo sempre algo como "Um Rio Chamado Casa").


E isso é, já agora, uma enorme vergonha, dado que Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra é possivelmente o livro mais bonito que li do autor - e quem tiver lido as minhas reviews anteriores saberá que os padrões estavam altos.

Alguém conhece magia mais bonita que a dos livros de Mia Couto?

O enredo passa-se em Luar-do-Chão, uma ilha onde ainda há tradições - temática frequente em Mia Couto, conforme me tenho vindo a aperceber. Dito Mariano, patriarca da família dos Malilanes, morre, e toda a família é chamada a comparecer, incluindo Mariano, seu neto, a quem é deixada, pelo próprio defunto, a responsabilidade de se encarregar do funeral (honra que devia ter passado ao primogénito). O avô está deitado numa sala sem tecto, e o seu estado clínico é... pouco estável, digamos.

E é deste avô quase-morto que Mariano recebe cartas, que levantam suspeitas acerca da sua história familiar, e vão construindo uma narrativa que o leva na descoberta sobre si próprio - Mariano, ao começar a conhecer o avô, aprende a conhecer-se a si mesmo, mas também conhece Luar-do-Chão, terra onde nasceu mas onde não cresceu. Valores da cidade, valores tradicionais da terra, sobrenatural e fantasia - este livro é lindíssimo, inesquecível.

A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre e é engasgada em nuvem.

Temos a avó Dulcineusa e a sua irmã muito mais nova, Admiranga, o pai de Mariano, Fulano Malta (o pai que não se sabe definir como pai), e a sua falecida esposa Mariavilhosa, os tios Abstinêncio (que se abstém da vida, apagado por um amor impossível) e Ultímio (novo-rico que personifica o abandono dos valores tradicionais), e a infeliz Miserinha, todos eles envoltos num mistério que leva ao rio Madzimi e às origens de Mariano, uma viagem à sua infância, no local que é comum a toda a família, Luar-do-Chão.

Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações - a dos vivos e a dos mortos.

E é então Mariano incumbido de fazer com que tudo volte ao normal, entre as tragédias e romances antigos e as actuais ameaças à ilha, dramas e segredos de família que terá de compreender. Só Mariano conseguirá fazer com que o avô possa, finalmente, morrer - pois mesmo a terra se ressente e não permite ser escavada, o local onde um carro importando atolara enrijou e tornou-se pedra dura, não aceitando o semi-defunto antes do tempo, exigindo antes uma verdade que ainda não se descobriu.

Afinal a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos.

E regressa o neto Mariano portanto para salvar a terra, para salvar a sua casa, para juntar o que fica depois da morte do avô, juntando as peças no puzzle que são as várias cartas que recebe dele como que por magia. A casa que o tempo desmorona, o rio que tanta coisa levou na família de Mariano, a terra, a ilha de Luar-do-Chão que é, para todos, uma casa - a terra que se poderá entender como Moçambique, que precisa de paz, de fazer as pazes com quem lá vive.

O bom caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo.

5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Maratona Literária de Verão 2017: 776 pág.

Comentários

  1. Alguém conhece magia mais bonita que a dos livros de Mia Couto?

    Os do Pepetela? :p

    ResponderEliminar
  2. Mas uau, gostaste mais deste do que do Terra Sonâmbula? Tens de me emprestar :pp

    ResponderEliminar
  3. Bela review, parece bastante bonito o livro sem dúvida

    ResponderEliminar
  4. Só li, já há muitos anos, um livro do autor mas quero ler mais. Este parece ser uma óptima sugestão =)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Qual leste, Tita? Este é lindíssimo sim, recomendo mesmo muito!

      Eliminar

Enviar um comentário