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El-Rei Junot

Quis ler este livro por um pequeno excerto que li num artigo da Sábado descoberto por acaso.


O príncipe regente bota a cabeça de fora e, ao avistar a carruagem de Carlota Joaquina, berra num desespero: – Parem! Parem! Voltem para trás que aí vem a p...!

Estava D. João VI fugindo das invasões francesas, em direcção ao Brasil e, parece-nos, fugindo também da sua esposa.

El-Rei Junot é um livro único: de Raul Brandão, à data, conhecia apenas o nome (muito ligado a Húmus), e esta obra tem uma estrutura extremamente atípica. Se pensarmos no Guerra e Paz, de Tolstoy, temos um romance histórico, que nos relata a guerra e lá entrelaça, nos tempos de paz, os dramas de algumas famílias russas; aqui, temos os relatos de guerra, da família real, da população portuguesa - a forma como o domínio francês sobre o território português afectou a história, a cultura e a sociedade do país.

Portanto, para quem esperava um romance histórico: não é um romance histórico, embora envolva algum (bastante) do drama que lhes é comum em tempos de guerra. Entre as histórias das regências e dos acordos franco-espanhóis, acompanhamos um pouco da intimidade de Junot com a Condessa da Ega, que num segundo casamento se tornaria Juliana Stroganoff, a mais fascinante das filhas de Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna.

No camarote do Quintela a Ega sorri. Apenas duas fitas lhe prendem dos ombros - as mangas eram curtíssimas - o vestido aberto. Quando a mulher, com graça, solta o chale de cachemira, que Napoleão trouxera do Egipto, parece oferecer-se como uma deusa saindo duma nuvem, decotada e coberta de jóias à antiga...

A sociedade, a guerra, a resistência a uma invasão, a nobreza e o povo: Raul Brandão pegou em todas as variáveis possíveis e escreveu sobre um período importantíssimo da história, não apenas portuguesa, mas de toda a Europa.

A horda que avança não é bem um exército: é um jacto de cólera, de paixões, de dor estreme. Comanda-a um doido, Junot. Foi general, duque, olhou para o mundo do alto de um pedestal, com trezentos contos por ano, e galões de oiro da cabeça aos pés — foi toda a vida sargento. Ele manda, os outros obedecem. Segue-o a corte de aventureiros e soldados, quase todos imberbes, arrancados à França extenuada. Quantas dificuldades no recrutamento! Os homens desertam, mutilam-se, apedrejam os gendarmes, passam as fronteiras. A teta, à força de ordenhada, deita sangue. E com eles vêm polacos, velhos granadeiros, restos, bandidos de todo o mundo. O homem que todos os dias vive cara a cara com a morte, põe de lado as futilidades da existência: sua moral difere: o sofrimento humano não o toca: apressa-se a gozar.

E não é pura história, não é um simples relato, não obstantes os números e factos que nos vão sendo apresentados: é uma obra magistral sobre como Napoleão não foi apenas derrotado pela chuva belga em Waterloo, ou cuja derrota não teve início pelas temperaturas gélidas da Rússia. 

Napoleão marcha sobre o mundo. Revolve tudo. Assola, destrói e saneia. Remexe as nações bolorentas e espessas, os povos no marasmo, as cortes de aparato: a Espanha, a Alemanha, a Itália e o Papa, tudo a soldadesca num ímpeto derruba, levando-o em cacos diante de si.
Sobre a Europa extravasa esses homens, numa perpétua agitação, a geração do Terror, e cria outras ideias, espalha outras ânsias. Por cima das ruínas e da morte paira um desmedido sonho de aflição…

 

E além de números e factos e acordos internacionais, lemos ainda cartas, como sendo as de D. João VI ao seu grande amigo Francisco Lobato. A narrativa sobre a corte, e sobre o rei, é em particular deliciosa, mesmo sem contar com a belíssima imagem que o autor recria do Palácio de Queluz, uma Versalhes sem grandeza nem história - e sobretudo sem desgraça:

Que vida, que mulher, e ainda por cima aquela carcaça ordinária! O resto à volta são vaidades, charlatães com comendas e veneras, corte empavesada e inútil, e um país longínquo aferrado à terra e à dor. Quando encontra uma alma a que se apegue - a dum criado - trata-a com uma grande afeição. Espremido dá ternura.
Todos o enganam. Para encontrar um amigo fiel, teve de descer ao Lobato (...)

Note-se que, nas suas cartas, D. João VI tratava Francisco Lobato por "meu amor".

Não é um livro para qualquer um, mas é belíssimo de ler.

4/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Gostei muito de Húmus, mas também foi-me difícil de ler, sempre aquele tom e densidade psicofilosófica monocórdica que me ia desgastando naqueles longos parágrafos. Este rei é semelhante?

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    1. Este rei é semelhante, trazendo ao leitor vários números e documentos reais que retratam a época. Muito curiosa para a restante obra do leitor!

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  2. Puto Naps!
    Raul Brandão, será que algum dia irei ler outra obra dele? Fico 'encarnado' só de pensar isso, mas talvez aconteça, talvez seja este livro, talvez não mas gostei do post, aparenta ser um livro com potencial
    Gosto da capa também, vale o que vale claro
    E as fotos? Clássico Palácio de Queluz :p também gostei delas claro
    'Raul Brandão pegou em todas as variáveis possíveis e escreveu sobre um período importantíssimo da história, não apenas portuguesa, mas de toda a Europa.' concordo

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    1. Créditos ao Naps e a ti que tiraste as fotos do Palácio de Queluz :$

      Haha encarnado :p eu quero ler o Húmus! E possivelmente o teu livro do palhaço :$

      Sabes como é, Naps a mover o mundo!

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  3. Acho tão curiosa a forma como descobrimos e repescamos autores já um pouco esquecidos! Não me lembro se li o Húmus ou não, porque em miúda li muitos autores portugueses de meados do século XX e ainda não havia Goodreads. :-)
    Não aprecio romances históricos, mas a referência ao "meu" palácio é certeira!
    Mas queria dizer-te que aceitei uma outra sugestão tua, depois corroborada pela Ana dos Sabor dos Meus Livros, e li Tanta Gente, Mariana. Tanto desalento e tanta amargura em frases soberbas... Adorei. Além do conto principal, gostei especialmente de A Vida e o Sonho e Desencontro. Espero encontrar mais livros velhinhos dela, senão, virão da biblioteca. Sou sovina, não dou 15 euros por um livro! ;-)
    Da época da Maria Judite de Carvalho, gosto muito da Angústia para o Jantar e Um Homem Não Chora do Luís de Sttau Monteiro. Apesar de ser sobretudo de uma perspetiva masculina, retrata extremamente bem o papel e as limitações da mulher lisboeta na sociedade repressora e patriarcal da altura.
    Paula

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    1. É verdade, há autores que vão caindo no esquecimento e depois vão sendo relembrados - há uma editora que este ano estava a reeditar a obra de Raul Brandão, creio que a "Bela e o Monstro", pelos 150 anos do seu nascimento. De resto, e fora Húmus, creio que a sua obra não é muito popular ou fácil de encontrar - de resto, como a de Maria Judite de Carvalho! Fico muito feliz por estar a conseguir influenciar algumas pessoas (incluindo a Ana :) ) a ler a sua obra, que acho maravilhosa. Li recentemente "armários vazios", que é um romance, e adorei e recomendo imenso. Também sou sovina e espero pela Feira do Livro :) infelizmente não tenho horários que me permitam ir à biblioteca...

      Anotarei tudo isso - muito obrigada! do Sttau Monteiro só li o "Felizmente há luar", do qual infelizmente não fiquei fã... das leituras obrigatórias mais penosas...

      (atenção que este livro engana - não é um romance histórico, é um conjunto de factos, é indescritível, no fundo, nunca lera um livro assim!)

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