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A Misteriosa Chama da Rainha Loana

Fiz-me sócia da biblioteca.


O que (finalmente) me motivou, além de uma mudança de emprego que favorece a boa relação com as bibliotecas municipais de Lisboa (para trabalhar quase a paredes-meias com uma), foi o facto de querer ler A Misteriosa Chama da Rainha Loana, livro que me fora imensamente recomendado e que estava, vira eu, esgotado (foi recentemente reeditado pela Gradiva). Tinha aqui a oportunidade de iniciar relações com as bibliotecas, portanto...

Há anos que queria ler Umberto Eco; tenho ali O Nome da Rosa na estante, mas tenho medo de o ler, porque consta que Eco é denso e porque me lembro de achar o filme denso quando tinha 15 anos. E sim, sei que isto não é justo. Este foi, portanto, o meu primeiro encontro com o autor.

Yambo (alcunha de Giambattista Bodoni), de 59 anos, é um alfarrabista especializado em incunábulos e outras raridades, que acorda de um "acidente" (ataque cardíaco ou algo semelhante) sem memória. Isto não é, aliás, totalmente verdade: ele não tem memória de quem é, mas tem memória, mais especificamente das várias coisas que leu, de vários eventos no mundo (mas fundamentalmente literária).

 - A sua memória parece estar em óptimo estado. A propósito, o senhor como se chama?

Foi quando hesitei. Contudo, tinha-o mesmo debaixo da língua. Um instante depois, respondi da forma mais óbvia.
 - Chamo-me Arthur Gordon Pym.
 - O senhor não se chama assim.
Certamente Gordon Pym era outra pessoa. Ele nunca mais voltou. Tentei pactuar com o médico.
 - Podem chamar-me... Ismael?
 - Não, o senhor não se chama Ismael. Faça um esforço.

(curiosa logo a referência inicial de duas personagens de obras que relatam naufrágios)

Yambo sabe lavar os dentes, mas não reconhece a mulher, nem as filhas. Descobre que a sua empregada na loja, Sibilla, é lindíssima e desperta algo nele, mas não sabe afirmar se algum dia  tiveram algo, o que o perturba. Queixa-se à mulher sobre ter uma memória "de papel", de enciclopédia, de livros, apenas, que lhe surge em pedaços. Eventualmente, volta à casa onde passou grande parte da sua infância e juventude, Solara, na companhia dos pais e do avô, de quem também não se lembra, na esperança de encontrar algo que reconstrua a pessoa em quem ele se tinha tornado.

E, em Solara, Yambo encontra mais livros. Entre objectos pessoais, vários livros: muita banda desenhada, livros que seriam populares na Itália da altura (note-se que Yambo e Eco tinham a mesma idade). Temos, portanto, o protagonista envolto em objectos e coisas de infância, discos, livros, selos, pacotes de cigarros, brinquedos - mas temos também a perspectiva de um rapaz sobre a Itália Fascista e a forma como esta influenciava a cultura. Flash Gordon, Jules Verne, Sherlock Holmes, muitos autores italianos ou muita italianização dos "inimigos": porque há uma visão maravilhosa e completa da cultura popular italiana da altura da Segunda Guerra Mundial (mais sobre isso mais à frente); mas, à medida que Yambo avança nas suas leituras, que lhe são extremamente vívidas, apercebe-se que as está a ver com os olhos de quase 60 anos, a tentar entender como as teria percebido em criança, a criar uma memória nova - e não a recuperar a perdida.


Porque saber o que leu em criança acaba por não ser suficiente para saber quem foi, ou em quem se tornou.

Por este ponto, o livro está repleto de imagens: de capas de livros e bandas desenhadas antigos, de brinquedos, de latas de chocolate, dos pacotes de cigarros, de posters dos anos 20, de propaganda fascista, de capas de vinis (acompanhados de letras de músicas), de selos... são estas as imagens que marcaram Yambo, que despertam algo nele agora, mas ele não sabe exactamente o quê.

Yambo encontra eventualmente os seus cadernos da escola, onde acompanhamos a forma como a doutrina fascista permeava a educação, através da inocência infantil de quem não compreende por que modo deve pensar ou agir de certa maneira; a subida de Mussolini ao poder, a aliança com a Alemanha, a eventual derrota, o que levou o avô a desistir do jornalismo para se dedicar à venda de livros, bombardeamentos em Milão, o nevoeiro que obceca Yambo (e porquê?).

Assim, Yambo revive as memórias de uma geração, mas não as suas.

Mas mais que os cadernos da escola, Yambo encontra finalmente a antiga capela da casa, onde escondera as suas coisas. E, aí, descobre que houve um primeiro amor. Liga ao seu melhor amigo de uma vida, Gianni, que lhe confirma a existência de Lila Saba, uma colega da escola, um amor platónico - uma rapariga de quem se lembra, sim, perfeitamente. Mas Yambo não se consegue lembrar daquela que tanto o marcou...

Amar uma nuca. E o casaco amarelo. Aquele casaco amarelo com o qual apareceu um dia na escola, luminosa no sol primaveril - e sobre o qual poetei. Desde então nunca mais consegui ver uma mulher com um casaco amarelo sem pressentir um chamamento, uma insuportável saudade.

E aqui o livro muda completamente de tom. Do homem que se quer reencontrar consigo próprio, passamos ao homem que se quer reconciliar com o amor platónico que nunca esqueceu.

E se o choque de redescobrir um amor perdido para sempre não fosse suficiente, Yambo encontra, entre os pertences do seu avô, um simples livreiro, um First Folio - algo que o choca ao ponto de provocar um segundo "incidente", um segundo coma.

E é neste segundo coma, na parte final do livro, que as memórias de Yambo surgem de novo, interligando-se com os vários objectos com que se cruzou em Solara; um pouco como a ideia de "ver a vida a passar à frente dos olhos" antes de morrer... revela um antigo segredo do seu passado, dos tempos da guerra, relembra vários momentos, detalhes, pormenores, sabemos finalmente quem é Yambo e de onde ele veio, mas, de forma frustrante, ele continua sem se conseguir lembrar daquilo que mais queria, a memória que persegue e não encontra: a cara de Lila. É a descrição mais bonita e mais sincera de um amor platónico.

Queria-a simples como era e como a amara na altura, apenas um rosto sobre um casaco amarelo. Queria a mais bela que alguma vez soubera conceber, mas não a belíssima pela qual outros se perderam. Bastar-me-ia mesmo grácil e doente, como deve ter estado nos seus últimos dias no Brasil, e ainda lhe diria tu és a mais bela das criaturas, não trocaria os teus olhos pisados e a tua palidez pela beleza dos anjos do céu! Queria vê-la surgir no meio da corrente, sozinha e imóvel, a olhar para o mar, criatura transformada por feitiço numa bizarra e linda ave marinha, as pernas compridas nuas e delgadas, delicadas como as de uma garça e, sem a perturbar com o meu desejo, deixá-la-ia na sua distância de princesa longínqua...

E, no fim, as várias personagens das bandas desenhadas - Flash Gordon, Mandrake, Ming, entre vários outros - que marcaram a infância de Yambo surgem para ajudar a Rainha Loana, a quem Yambo pede, desesperadamente, ajuda: que, com a sua misteriosa chama, lhe permita recordar a cara da sua amada... aqui, as ilustrações são riquíssimas, os acontecimentos espectaculares, pois tudo o que fora integral ao crescimento e formação de Yambo surge naquele que parece ser o último momento, seja da sua vida, seja de uma alucinação.

Porque o livro acaba abruptamente, numa espécie de nevoeiro - o nevoeiro que Yambo tanto procurava nos seus livros.

5/5

Podem comprar uma outra edição aqui.

Comentários

  1. Porque é que o Sol se está a tornar negro?

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  2. Eu é que agradeço a confiança. 🤓

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    1. Desde que não recomendes pratos d'O Lagar do Troll Raivoso, confiarei (não sei meter emojis aqui, que estou no desktop, mas imagina o coraçãozinho deprimente)

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  3. Não li muito de Eco, mas de facto tudo o que li era denso, cheio de informações subliminares. Não gostei do seu último romance, Página Zero, mas tem coisas muito interessantes. Adorei o Cemitério de Praga, O Pêndulo de Foucault gozou comigo e claro O Nome da Rosa está cheio do submundo da crendice medieval, da paixão pelos livros e um criminoso em série que o torna uma obra-prima, um policial como nenhum outro.
    Não tenho em mente muitos heróis da banda desenhada, mas o livro parece interessante.

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    1. Leu muito mais do que eu, Carlos, que só li este! Hei de investigar o Cemitério de Praga e O Pêndulo de Foucault - em tom de curiosidade, vi dois pêndulos no ano passado, o do Panthéon e o do Arts et Métiers em Paris. Não sei até que ponto o livro se relaciona com o objecto, mas o objecto em si é fascinante, mesmo para quem, como eu, percebe pouquíssimo de física.
      Recomendo-lhe este. Mais que pelos heróis de banda desenhada, na sua maioria também desconhecidos para mim, pelas questões de identidade, memória, e pela procura daquele amor perdido no tempo, o primeiro, cuja chama nunca se apagou.

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  4. Nunca li Umberto Eco com receio que ele seja demasiado inteligente para mim, com todas as suas referências e metaliteratura, ainda que neste livro haja temas, como a memória e a nostalgia, que me agradem muito. E olha que não estou a subestimar-me, que eu tenho-me em alta conta. Ah! Ah!
    E esta pessoa aqui que também faz a biblioteca está um pouco zangada com elas hoje. Na segunda-feira passada, fui à do Camões, e estava fechada. Hoje fui à de Alvalade, idem. Parece que só abrem em segundas e sábados alternados, o que para mim é um pouco totoloto!
    E nem ia trazer nada (digo eu...), ia só devolver um livro fabuloso que te recomendo tanto, tanto, se ainda não o leste: Myra, da Maria Velho da Costa. Acho que é o teu género, daqueles de ler com o dicionário ao lado. ;-)
    Paula

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    1. Compreendo perfeitamente, pois tinha precisamente a mesma ideia acerca do autor! Este não achei particularmente difícil, de todo - mas há títulos do autor que me deixam receosa... olha que ainda não peguei n'O Nome da Rosa que está ali na estante!
      Pois, eu sei que a de Belém (que tenho frequentado mais) é das que raras Segundas-Feiras e Sábados abre - as tais alternadas - portanto tento precaver-me de antemão. A Galveias, que é a mais perto do trabalho, abre todos os Sábados e Segundas... não sei qual é o motivo ou o critério, mas é realmente chato para quem por acaso tem disponibilidade nesses dias e, geograficamente, se vê limitado!
      Tenho o Myra debaixo de olho há muito tempo! É a única "Maria" que me falta ler. Há na Biblioteca de Belém, mas como é daqueles que também quero comprar, porque ainda assim não parei de gastar dinheiro em livros, ainda não o trouxe :)

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    2. Problemas de primeiro mundo, claro, que logo apanhei o metro e fui a Galveias, mas podiam facilitar com uma caixa de devoluções, como sei que há numas bibliotecas lá para o Norte.
      Aqui que ninguém nos ouve, já encomendei o Myra porque sei que vou relê-lo. A biblioteca tem-me deixado realmente poupar dinheiro porque não tenho de comprar todas as obras que me suscitam curiosidade como antes, mas se gostei muito, quero-as para mim!
      Paula

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  5. Não conhecia :)
    Sigo o blog, beijinhos.
    https://the-choice-26.blogspot.com/

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  6. Fizeste muito bem em ser sócia da biblioteca :p
    Umberto Eco, nunca li nada do senhor mas tenho bastante curiosidade, esta review está lindíssima

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    1. Será que fiz? :$
      Oh, muito obrigada :$ eu também tinha muita curiosidade, ao mesmo tempo que muito receio!

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    2. Claro que sim, então não concordas? Por seres sócia conseguiste requisitar e ler este livro, por exemplo

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    3. Tendo em conta que foi reeditado recentemente... :$ mas sim, até isso ter acontecido, esta foi a minha chance :p fora isso, tive um certo vício de biblioteca :o

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