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Afirma Pereira

Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão.


Tinha já curiosidade acerca deste livro há alguns anos, dado o seu contexto: 1938, Portugal salazarista, menções à Itália de Mussolini e ao regime franquista. Segunda Guerra Mundial ainda à porta. No entanto, confesso que foi a edição em novela gráfica da G.Floy que aumentou esta curiosidade, e, sabendo disto, o meu namorado decidiu trazer-me este livro como souvenir das suas férias no Algarve.

Introduza-se Pereira, um jornalista de meia idade, modesto, obeso, responsável pela página cultural de um jornal incipiente, chamado Lisboa, de índole católica. Para o suplemento de Sábado, traduz contos franceses, mas precisa de mais material. Simples, solitário, gostava da sua limonada, de comer uma omelete no Café Orquídea, perto do trabalho, de falar com o retrato da falecida esposa. Pereira está absolutamente longe de ser um revolucionário, um herói: é um homem comum.

Pereira tinha já perdido todos os seus sonhos; e está tão desconectado da vida política que parece absurdo num contexto tão altamente politizado. E a sua vida poderia ter continuado assim, se não tivesse, um dia, lido um artigo sobre a morte e pensado contactar o seu autor para escrever obituários para o suplemento cultural do jornal.

Começaram a comer em silêncio, depois, a certa altura, Pereira perguntou a Silva o que pensava de tudo isto. Tudo isto o quê?, perguntou Silva. Tudo, disse Pereira, o que se está a passar na Europa. Oh, não te preocupes, replicou Silva, aqui não estamos na Europa, estamos em Portugal. Pereira afirma ter insistido. Sim, continuou, mas tu lês os jornais e ouves a rádio, sabes o que se está a passar na Alemanha e na Itália, são fanáticos, querem pôr o mundo a ferro e fogo. Não te preocupes, respondeu Silva, estão longe. Está bem, prosseguiu Pereira, mas a Espanha não fica longe, fica a dois passos, e tu sabes o que se passa em Espanha, é uma carnificina, e no entanto era um governo constitucional, tudo por culpa de um general traidor. A Espanha também fica longe, disse Silva, nós estamos em Portugal. Pode ser, disse Pereira, mas as coisas também não correm bem aqui, a polícia faz o que quer, mata pessoas, há buscas, censura, isto é um Estado autoritário, as pessoas não contam para nada, a opinião pública não conta para nada. Silva olhou-o e pousou o garfo. Ouve lá, Pereira, disse Silva, tu ainda acreditas na opinião pública?

É assim que Pereira conhece Monteiro Rossi. Monteiro Rossi não é a promessa que Pereira encontrara no artigo, mas, não obstante, simpatiza com o jovem e contrata-o. Monteiro Rossi mostra-se muito mais politizado do que Pereira gostaria, entregando artigos que Pereira não considera utilizáveis dadas as sensibilidades da época (como García Lorca). Mas Pereira não o despede, aliás, paga-lhe. Adiantado.

Então, com a maior naturalidade, Monteiro Rossi disse-lhe: Oiça, desculpe-me falar nisto, eu faço o elogio fúnebre de García Lorca, mas o senhor não me poderia adiantar qualquer coisa?, preciso de comprar umas calças novas, estas estão todas sujas, e amanhã tenho de sair com uma rapariga que vem daqui a pouco ter comigo e que conheci na universidade, é uma colega minha e gosto muito dela, queria levá-la ao cinema.

E depois há Marta, a misteriosa, bonita e magra namorada de Monteiro Rossi, que Pereira culpa pela instabilidade da vida deste - ambos envolvidos com a causa republicana espanhola, ambos revolucionários, ambos em movimentos suspeitos que em tudo vão contra o desejo de sossego de Pereira.

Afirma Pereira que o padre António se levantou e estacou diante dele com uma expressão que lhe pareceu ameaçadora. Ouve, Pereira, disse, o momento é grave e cada um tem de fazer as suas opções, eu sou um homem da Igreja e tenho de obedecer à hierarquia, mas tu és livre de tomar uma posição pessoal, mesmo sendo católico. Mas então explique-me tudo, implorou Pereira, porque gostaria de tomar posição, mas não estou informado.

Cada vez mais, Pereira vê-se envolvido na vida dos dois jovens e, consequentemente, na vida política. Tudo isto começa ao ver em Monteiro Rossi o filho que nunca teve - mas este é um filho idealista, que tenta recrutar portugueses para as forças republicanas espanholas, e que falsifica passaportes. E, assim, dá-se o inevitável: Pereira não consegue mais ser apolítico quando a moral do país começa a cair, não consegue não se envolver, porque a vida dele começa a ser afectada, a sua vida solitária e banal de um homem que preferia apanhar o eléctrico a sofrer a subir uma rua. É impossível que a alma de Pereira fique impávida perante o que Pereira presencia.

Há o momento em que Pereira vai tentar curar os seus problemas cardíacos e de obesidade numa clínica de talassoterapia, e o Dr. Cardoso, confrontado com as alterações na vida e humor do seu paciente, lhe fala na emergência do seu "eu hegemónico". Ou será apenas a perda da passividade, quando o jornalista descobre que pode ter sonhos, e pode ganhar coragem depois dos 50?

A meio da tarde levantou-se, tomou um duche, vestiu-se, pôs a gravata preta e sentou-se em frente do retrato da mulher. Conheci um médico inteligente, disse-lhe, chama-se Cardoso, estudou em França, explicou-me uma sua teoria sobre a alma humana, ou antes, é uma teoria filosófica francesa, parece que dentro de nós existe uma confederação de almas e que de vez em quando há um eu hegemónico que toma a direcção da confederação, o doutor Cardoso afirma que eu estou a mudar o meu eu hegemónico, assim como as serpentes mudam de pele, e que este eu hegemónico mudará a minha vida, não sei até que ponto isto será verdadeiro e francamente não estou muito convencido, bom, paciência, logo se vê.

Não sabemos a quem Pereira afirma tudo o que nos é narrado, na terceira pessoa. Será Pereira uma testemunha, um suspeito? Isto acresce ao sentimento de ameaça que paira ao longo do livro.

É um livro muito forte, muito triste porém recheado de humor, disfarçado num invólucro de narrativa mais simples, muito delicada e bonita. Pereira descobre-se quando descobre a coragem, porque a coragem é uma necessidade em tempos como os anos 30. E ficará para sempre a carta que Pereira escreve no final do livro, uma belíssima homenagem a todos os anónimos que resistiram a todas as ditaduras.

5/5

Podem comprar esta edição aqui.

Comentários

  1. Comprei este e-book há uns tempos, porque estava quase dado e tinha gostado da escrita deste autor quando li o Nocturno Indiano, há uma série de anos.
    Gosto muito do tema da coragem, da cobardia e do idealismo nos livros. A ver se lhe dou prioridade. A ele e a mais 50, ah, ah!
    Paula

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    1. Haha "a mais 50", conheço bem o dilema! Nunca li outros livros do autor, mas vou apontar esse :) fiquei com curiosidade depois deste, de que gostei muito! Recomendo essa prioridade!

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  2. Lembro-me que então gostei muito deste livro, lembro da repetição do relato afirma Pereira..., lembro-me que é um manifesto antifascista, infelizmente nada retenho da estória.

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    1. Se o Carlos for dado a releituras, talvez este seja um bom candidato. Gostei muito de toda a mudança na vida de Pereira.

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  3. Que foto! Esse caffè latte tão bom, que descoberta

    Gostei muito desta review Ba, mesmo sem nunca ter lido o livro mas fiquei com uma vontade enorme, parece ser muito bom

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    1. Mas tu nunca bebeste esteeee :o

      Eu gostei muito do livrinho, muito muito obrigada :$

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    2. Não é o azul? Parecia xD
      Ainda bem que gostaste Ba, fico muito feliz mesmo

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    3. nãooo, este é preto, extra forte e sem açúcar, diz ali "no soy dulce" :p
      também eu fico feliz :$ és incrível :$

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  4. Tantas vezes tropecei neste título e tantas vezes o ignorei... Gostei mesmo muito da tua opinião e agora quero redimir-se dessa minha falta imperdoável!
    Obrigada!

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    1. Ana, este livro é maravilhoso! "Roça" apenas a Guerra Civil Espanhola (tema que sei que tanto gostas), mas acredito que gostes do livro :)

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    2. Virá comigo numa das próximas visitas à biblioteca :)
      Beijinhos!

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    3. Ansiosa pela tua opinião! Beijinhos :)

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Gostei de revisitar este livro com estas palavras. Gosto muito de António Tabucchi. Acho o seu imaginário fabuloso, ao qual alia uma delicadeza e uma poesia únicas. O primeiro que li do autor foi "Noturno Indiano", ainda era uma adolescente, e lembro-me que me impressionou bastante. "Afirma Pereira" já tem versão cinematográfica, com Marcello Mastroianni no papel de Pereira ;)

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    1. Muito obrigada, Sofia! :) tenho certamente de procurar esse livro, quero ler mais do autor, pois gostei mesmo muito deste.
      Tenho de procurar o filme também :) muito curiosa para ver como ficou a adaptação!

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