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How to Be Both

Como um livro me pode surpreender imenso.


Peguei em How to Be Both, de Ali Smith, nos últimos dias de Setembro, fingindo ainda ir a tempo de o ler para a leitura do mês de Setembro do grupo de leitura da Rita da Nova, Uma Dúzia de Livros, cujo tema era "um livro sobre recomeços". Após pesquisar longamente listas sobre livros sobre new beginnings, este era o único que eu tinha na estante que aparecia minimamente nalguma.

Li-o, portanto, sem qualquer expectativa. Não sabia absolutamente nada sobre o livro. Peguei nele após a muito lenta e não particularmente entusiasmante experiência que se revelou ser A Guerra dos Mundos. E acabou por revolucionar o meu mês de lentas leituras.

Como o título indica, o livro trata de dualidades. Para começar, é narrado em duas vozes, com uma metade pertencendo a uma rapariga adolescente britânica, George, e a outra a um pintor renascentista praticamente desconhecido, Francesco del Cossa (e, descobri posteriormente, o livro foi publicado de modo a que metade das edições tivesse a parte de George primeiro e a outra metade, a de Francesco. A minha edição começa por George).

Ambas as metades do livro poderiam ser, em si mesmas, narrativas isoladas, mas estão interligadas de forma muito cuidadosa, não se sobrepondo, mas tocando-se subtilmente. Uma narrada na primeira pessoa, com memórias da Itália renascentista; a outra, na terceira pessoa, acompanhando os  dias de hoje. A forma como se interpretam as referências que cada parte faz à outra dependerá, é claro, da forma como se lê o livro.

Past or present? George says. Male or female? It can’t be both. It must be one or the other.
Who says? Why must it? Her mother says.

George, uma rapariga com nome de rapaz (nega o "Georgia" de nascimento), oferece uma narrativa muito mais convencional, familiar, segura e imediatamente apelativa ao leitor. Uma adolescente contemporânea, cuja mãe acaba de morrer, cujo pai está emocionalmente indisponível e cujo irmão mais novo está, ainda, em choque. A mãe de George, Carol, pergunta, what's the point of art?, e o livro procura, de várias maneiras, responder a essa pergunta.

Apesar de narrada na terceira pessoa, a história de George flutua no tempo (como a de Francesco), em torno de alguns momentos que se tornarão chaves. Uma das suas melhores memórias é a de uma viagem com a mãe e o irmão a Ferrara, em Itália, onde viu os frescos de Francesco del Cossa. Nos meses que se seguem à morte repentina da mãe, George "volta" a essa viagem, onde discutiu arte e feminismo com a mãe. Agora sozinha, George tenta compreender a mãe, a sua vida enquanto anarquista, as suas obsessões - com a ideia que alguém no governo a está a monitorizar, com uma mulher de quem fora amiga, com a obra de Francesco del Cossa. Pelo caminho, George desenvolve as suas próprias obsessões, com um vídeo pornográfico que encontra na internet, com uma rapariga da sua escola, Helen.

There was a lot more world: cause roads that look set to take you in one direction will sometimes twist back on themselves without ever seeming anything other than straight, ... many things get forgiven in the course of a life: nothing is finished or unchangeable except death and even death will bend a little if what you tell of it is told right.

Apesar de a história de George ser mais imediatamente cativante, preferi o stream-of-consciousness de Francesco, o não convencional, fragmentado que acaba por prender o livro aos seus temas: o poder da arte, a mutabilidade e fluidez de género e sexualidade, a forma como a existência sai da "caixa" em que a tentamos conter.

Ao longo da narrativa de George, descobrimos que pouco se sabe sobre Francesco del Cossa. Ali Smith aproveita-se disto para criar a sua própria versão, na qual Francesco nasce mulher (facto apenas muito subtilmente referido). Apesar de algo pretensiosa, a narrativa de Francesco é extremamente criativa, ritmada, à medida que avança e recua através da memória. O pai de Francesco, Cristofano del Cossa, pedreiro, convence a filha a, vestida de rapaz, aprender o metier, para que possa, mais tarde, ser assistente de um pintor e aproveitar o seu talento.

Vemos, pela memória de Francesco, como conseguiu o trabalho nos frescos do Palazzo Schifanoia (e como o Duke, Borso d'Este, era forreta e não terá pagado a sua arte como merecido), ao lado do mais conhecido Cosimo Tura. Alguns detalhes deste fresco são referidos em pormenor por Carol, na narrativa de George, e estão impressos no interior da capa do livro (um detalhe maravilhoso); na narrativa de Francesco, há ideias das inspirações por trás de várias das imagens e alegorias. Essa parte é de uma criatividade sublime.

 

Francesco demonstra a luta entre tentar criar algo que dure, ao passo que a vida é efémera.

Cause nobody’s the slightest idea who we are, or who we were, not even we ourselves.

Apesar de o ambiente do séc. XV na Itália Renascentista não ter funcionado comigo (e eu adoro o Renascimento), há que louvar as referências a Alberti e Cennini, que quase nos levam a um museu. Há descrições belíssimas de várias pinturas, maioritariamente das de Francesco. Amantes de arte irão apreciar este livro - pessoas que viajam com o objectivo específico de ver uma peça ir-se-ão rever nna narrativa de George quando esta vai com a mãe ao Palazzo Schifanoia ver aqueles frescos, sobre os quais pouco ou nada sabiam, de um artista sobre o qual ninguém sabe quase nada, apenas pela experiência de ver a obra; e na narrativa de Francesco, nas suas descrições e referências ao processo criativo, à pintura, às influências exteriores que encontram lugar no produto final. Ambas as formas de apreciar arte.

Além das outras formas de dualidade ao longo do livro - a sexualidade, em George que tem uma amizade especial com Helena, o género, em Francesco que se disfarça de homem, entre várias outras situações e menções -, duas maneiras de escrever um livro. Primeira pessoa, terceira pessoa. E duas formas de apreciar arte.

E a vontade de regressar a Itália e conhecer mais dos seus caminhos menos trilhados saiu tremendamente reforçada.

5/5

Podem comprar esta edição na wook, na Book Depository ou na Bertrand; ou em português, na wook ou na Bertrand

Comentários

  1. Também tenho esse livro na estante, para ler brevemente. Por isso só li metade deste post, com medo de spoillers. :)

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    1. Cristina, adorei o livro e acredito que vai adorar também. Fico à espera de saber a sua opinião!

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