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Letters to Milena

O desafio para Setembro era ler um clássico de não-ficção.



Para este fim, escolhi Letters to Milena, de Franz Kafka. É a primeira vez em muito tempo que pego em Kafka, e o teor não ficcional desta compilação de escritos vem confirmar a ideia que temos do autor: um homem muito sofrido, física e psicologicamente.


Importam aqui duas coisas: quem era Milena, e a história de publicação desta antologia de cartas. Vou começar pela segunda. Há duas versões das Letters to Milena, e ambas consistem em correspondência escrita por Franz Kafka a Milena Jesenská durante o ano de 1920 (na sua maioria). A versão que eu li é a primeira, que foi publicada em 1953, nove anos após a morte de Milena em Ravensbrück, editada por Willy Haas. Há uma segunda versão de 1990, que repõe muitas passagens cortadas por Willy Haas por falarem de pessoas ainda vivas, cujas sensibilidades temia ferir, até porque Kafka teria feito quase caricaturas das pessoas descritas. Consta também que (porque as cartas originais não tinham datas ou envelopes) a edição mais recente apresenta as cartas sob uma nova cronologia.


As cartas foram dadas pela própria Milena a Willy Haas em 1939, após a anexação dos Sudetas e pouco depois da invasão de Praga em Março de 1939. Tendo morrido num campo de concentração, Milena nunca soube do destino destas cartas; já as que ela enviara a Kafka foram irremediavelmente perdidas, pelo que nos encontramos aqui uma sequência estranha de missivas: primeiro, porque nunca sabemos as respostas (salvo pelo pouco que Kafka dá a entender); mas também porque o seu ritmo era tão frenético que Kafka e Milena escreviam um ao outro todos os dias, frequentemente mais que uma vez por dia, sem aguardar a resposta do outro.


It occurs to me that I can't remember your face in any precise detail. Only how you finally walked away between the tables of the coffee-house, your figure, your dress, these I can still see.


Milena Jesenská nasceu em Praga em 1896. Casou com Ernst Pollak, com o qual foi viver para Vienna e, um dia, deparando-se com um conto de Franz Kafka (que seria o primeiro capítulo de Amerika, livro que tenho na estante à minha espera desde que fui a Praga), decidiu traduzi-lo de alemão para checo, tendo pedido permissão a Kafka para o fazer. A partir daí, Milena tornou-se não só na primeira tradutora de Kafka, mas também na destinatária de quase 150 cartas escritas, na sua maioria, em 1920.


Kafka escrevia em alemão, Milena responderia em checo. A troca de cartas torna-se cada vez mais intensa, com a troca de intimidades sobre a situação financeira precária de Milena (que trabalhava para se poder sustentar a si e a um marido que seria infiel), a solidão de ambos, os receios de Kafka, a sua doença (a tuberculose - que parece ter também afectado Milena), as fracassadas relações amorosas de Kafka, muita angústia, dor, mas também a ideia de que estas duas pessoas se compreendiam mutuamente, que tinham algo real apesar das circunstâncias - a distância (encontraram-se duas vezes ao longo dos dez meses cobertos por estas cartas, apesar da insistência de ambas as partes para mais encontros), o marido que Milena se recusava a abandonar, a identidade religiosa díspare, tudo o que atormentava Kafka.


(...) I can no longer write to you as to a stranger.


Vemos Kafka à beira de um colapso, a confessar não conseguir dormir, o degradar da sua doença, a exaustão que tudo isto lhe trazia e que se via exacerbado pela relação de ambos; Kafka a pedir a Milena que parasse de lhe escrever, mas a implorar-lhe que continuasse. E também Kafka demonstra preocupação constante, oferecendo dinheiro se fosse preciso, perguntando se ela já fora ver um médico, a perguntar por Ernst.


I'm tired, can’t think of anything and want only to lay my face in your lap, feel your hand on my head and remain like that through all eternity.


Apesar de as respostas de Milena fazerem falta - tornariam a leitura talvez mais suave, complementariam a informação, trariam o retrato completo da relação ao leitor -, é maravilhoso podermos ter acesso às palavras de Kafka para Milena, saber muito do impacto que esta relação teve na vida de ambos. São cartas dolorosas e intensas, cheias de beleza e angústia - aquilo que se esperaria do seu autor -, mas é precisamente isto que faz com que não seja uma leitura fácil, mas sim morosa. É uma versão interessante de não-ficção - ler as epístolas de uma só parte.


No, Milena, the possibility of a shared life which we thought we had in Vienna, does not exist, under no condition, it didn't even exist then, I had looked 'over my fence', had just held on to the top with my hands, then I fell back again with lacerated hands.


4/5


Podem comprar uma outra edição em inglês na wook, na Book Depository ou na Bertrand; a obra não se encontra traduzida para português.

Comentários

  1. Tenho de pôr este livro na minha wishlist, parece-me mesmo bom.
    Este mês também ando de volta de cartas. Li de "A para X" de John Berger em que também só temos as cartas de A e nunca as respostas de X, mas é uma obra de ficção. Ainda não terminei, para o teu projecto, as Cartas da Etty Hillesum, que são sobretudo as que escreveu aos amigos e pelas quais temos de depreender as réplicas e os acontecimentos, para os quais ajudam muito as notas de rodapé do editor. Por coincidência, o mesmo período, e o mesmo destino para Milena e Etty, infelizmente.
    Paula

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    Respostas
    1. O Young Werther também é um conjunto de cartas cujas respostas nunca conhecemos :) não me tinha apercebido que este até é um fenómeno "comum" na literatura!
      Não conhecia a Etty, muito interessante. O final da Milena deveu-se a outro motivo: é agora "righteous among the nations".

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