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Vida de Lazarinho de Tormes

Numa tentativa de aligeirar o começo duro deste ano, o desafio de Janeiro do #lerosclássicos2021 era ler um clássico de humor.



E como foi divertido o Lazarillo de Tormes!


Muita gente me questionou sobre o conceito de "clássico de humor"; de facto, há a ideia pré-concebida que os clássicos serão livros mais maçudos e sérios, o que não é, necessariamente, verdade. E nem é verdade que todos os clássicos de teor mais humorístico serão mais recentes; este livro em particular data de 1554 e é de autor anónimo (e mesmo os gregos clássicos tinham comédias).


O Lazarillo de Tormes é o grande clássico pícaro (ou picaresco?). Conta-nos a história de Lazaro, nascido no Rio Tormes (sim, dentro do rio), numa aldeia perto de Salamanca. Sendo uma zona da qual gosto muito, embora conheça mal, a leitura teve um gosto acrescido. Lázaro conta-nos a sua vida desde criança, na primeira pessoa, com todas as suas aventuras e desventuras - especialmente estas últimas. Tendo nascido muito pobre, trabalha desde garoto, e é desde os seus oito anos que serve vários mestres, cada um deles demonstrando rapidamente ser péssimo ser humano (de maneiras diferentes).


Pois, voltando ao bom do meu cego e contando as suas coisas, saiba Vossa Mercê que, desde que Deus criou o mundo, ninguém formou mais manhoso nem esperto.


E é com os seus mestres que Lazarillo aprende a enganar o próximo, e não a respeitá-lo, aprende a roubar para sobreviver numa sociedade profundamente corrupta, e é através das suas histórias absurdas que critica duramente vários tipos de figuras de autoridade do séc. XVI de uma Península tão católica. Esta edição, anotada, menciona quando são utilizadas expressões não só tipicamente espanholas da época, ou referências afins, mas também quando é referenciada a Bíblia, acrescendo assim à crítica directa à Igreja.


Sete breves capítulos (infelizmente tornam-se mais breves à medida que o livro avança) fazem-nos seguir a vida deste herói, forçado a sair de casa em criança peça pobreza extrema, conhecendo o abuso, a crueldade, a corrupção a hipocrisia e a injustiça, satirizando brutalmente a sociedade da sua época em eventos breves mas memoráveis.


(...) vinha junto ao morto uma que devia ser a mulher do defunto, carregada de luto, e com ela muitas outras mulheres, a qual ia chorando em altos brados, e dizendo:

 - Marido e senhor meu, para onde vos levam? Para a casa triste e desgraçada, para a casa tenebrosa e escura, para a casa onde nunca se come nem bebe!

Eu, que ouvi aquilo, juntou-se-me o céu com a terra e disse:

"Oh, desgraçado de mim! Para minha casa levam este morto!"


A parte final do livro é talvez mais fraca, sem dúvida por os capítulos reduzirem de dimensão. O final mostra-nos Lazaro a viver em Toledo, numa carreira que deveria ser de sucesso, numa vida familiar que deveria ser de felicidade - e que, a seus olhos, é, e compreensivelmente, pois já não passa fome e tem um tecto garantido e estabilidade. Pode soar deprimente, mas é das obras mais carregadas de humor (e de momentos para rir mesmo alto) que já li.


É uma pena não se saber quem foi o autor destas palavras, mas é compreensível, pelo conteúdo e pela época, que este tenha preferido o anonimato a um Auto-de-Fé. À data, o rei de Espanha era o Habsburgo Charles I (V de Áustria), que tinha feito da Inquisição um órgão estatal; denunciar, ainda que com um véu de sátira, o declínio moral do clero, poderia não ser a melhor das ideias. Além das elites eclesiásticas corruptas, destaque-se também que no início deste século surgira o luteranismo, em 1534 Henry VIII cria a igreja anglicana e, por volta da data de publicação deste livro, surge também o calvinismo.


Consta que há uma "segunda parte", que terá sido posteriormente publicada e então acoplada ao primeiro Lazarillo; consta também que esse segundo volume não vale a pena (e pode não ser da mesma autoria que o primeiro). Esta edição não o inclui, tem apenas o original.


Visivelmente influente, além de hilariante. É o tipo de livro que dá para ler de uma só assentada, e continua a valer a pena a sua leitura.


5/5


Podem comprar esta edição na wook, ou na Bertrand



Comentários

  1. Olá! Estava muito difícil encontrar um livro cómico que me apetecesse ler. Ao contrário da maioria, quando as coisas estão mal, não apetece nada ligeiro nem divertido; quanto mais trágico, melhor! Misery loves company. Só na literatura, no meu caso. :-)
    Tentei ler os Corpos Vis do Waugh, mas estava a ser muito "over the top", por isso, optei por um livrinho do Roald Dahl, que é um autor que aprecio muito. Li "O Dedo Mágico", sobre uma menina que se vinga de uma família de caçadores. Não é dos melhores dele, mas é torto, como eu aprecio.
    Beijinhos!
    Paula

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    Respostas
    1. Esse do Waugh ainda não li, mas tenho na estante :) nem o do Dahl (de quem só li o Mathilda)... percebo que o humor não seja uma temática para todos, embora a tenha escolhido de propósito para tentar aligeirar estes tempos! Se soubesse, tinha-te recomendado precisamente o Lazarillo: é tragicomédia no seu melhor. Imagina ter uma cebola como único alimento para uma semana!

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  2. Ah, não te preocupes, isto é um desafio e, como tal, é sempre bom explorar todas as opções. Com a quantidade de livros que tenho, arranjo sempre alternativas! Vai haver sempre categorias que são mais a nossa cara, como este mês, com os europeus, onde estou como pato na água. Nem sei para onde me virar...

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    Respostas
    1. Eu nos europeus também estou com demasiadas opções :) vou ler o Liza of Lambeth do Maugham porque:
      1) é curto
      2) tenho uma fotografia giríssima dele tirada há dois anos num café na holanda após a compra e quero aproveitar a foto...
      3) após o episódio do podcast que saiu a 26 de Dezembro, o convidado começou um desafio no instagram, #médicosescritores, e como sou parcialmente responsável, irei participar :)
      4) sei que já o leste e não amaste, mas é curto e quiçá dê para encaixar mais um!

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