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Passing

Peguei neste livro porque consta que tem alguma intertextualidade com The Vanishing Half, que quero muito ler.



Talvez intertextualidade possa ser uma palavra forte - a verdade é que ambos os livros tratam do mesmo tema, e este é um clássico que já queria ler há algum tempo. Publicado pela primeira vez em 1929, Passing, de Nella Larsen, um clássico do Harlem Renaissance (movimento do qual, vergonhosamente, nunca tinha lido nada) é um bom mote para levar o leitor a questionar questões raciais. Porque "passing" se refere a pessoas de cor que, sendo "claras" o suficiente, passam por caucasianas.


É um assunto interessante, sobre o qual nunca tinha pensado.


Talvez possa ser interessante explorar um pouco a biografia de Nella Larsen: biracial, saberia intimamente as possibilidades de passing, e o quanto esse gesto transgredia a cultura negra, mas também conheceria bem as contradições da sua identidade, quando as identidades tinham de ser absolutamente divividas quando "branco" ou "negro". Larsen casou com um homem branco de modo a melhorar a sua posição na sociedade, e foi enquanto mulher "branca" que conseguiu publicar a sua obra. Eventualmente divorciou-se e dedicou a sua vida a trabalhar como enfermeira, no Harlem, enquanto mulher "negra".


O livro é narrado por Irene "'Rene" Redfield, que recebe uma carta de uma amiga de infância, Clare Kendry, que vira há dois anos após mais de dez anos sem saber nada dela. Nesse primeiro reencontro, 'Rene descobre que Clare é casada com um homem branco, que não sabe nada das origens de Clare.


It’s funny about passing. We disapprove of it and at the same time condone it. It excites our contempt and yet we rather admire it. We shy away from it with an odd kind of revulsion, but we protect it.


Para Irene, a escolha de Clare traz sentimentos ambíguos e complicados - se Irene já se aproveitou da sua tez clara em situações em que sabe que não seria bem vinda ou bem tratada, é, ao mesmo tempo, orgulhosamente parte da comunidade negra do Harlem, casada com um médico, também negro, e passa muito do seu tempo a trabalhar em associações para angariar dinheiro para ajudar membros menos afortunados da comunidade. Ou seja - o passing de Clare parece quase a gozar com o orgulho de Irene.


É curioso contrapor os casamentos de ambas: o marido de Clare, banqueiro, não só não faz ideia das origens da mulher, como é abertamente racista. Já o marido de Irene, Brian, há muito que questiona como será criar os seus filhos numa sociedade "integrada" e quer mudar-se para o Brasil, onde crê que as questões raciais são inexistentes ou menos complexas. Mas Irene gosta da sua vida, tem o seu conforto - não compreende o porquê de Clare fazer o que faz, de se sujeitar a um marido racista, e não entende aquilo que acha ser um "desejo de aventura" por parte do marido, ao qual teme nunca corresponder.


O reencontro com Clare faz com que Irene comece a questionar cada vez mais a sua vida. A relação entre ambas não é fácil, mais ainda porque Clare quer "aproveitar-se" da amiga para poder estar com a sua comunidade de origem, mas sem lhe pertencer totalmente.


The trouble with Clare was, not only that she wanted to have her cake and eat it too, but that she wanted to nibble at the cakes of other folk as well.


Apesar de não suportar Clare, esta tem um enorme poder ou atracção sobre Irene. É difícil perceber se a tensão entre ambas é sexual ou não, mas a verdade é que ambas têm uma enorme inveja da outra: Clare acha que a vida de Irene é facílima, e Irene acha que Clare tem sobre Brian o mesmo poder de atracção que parece ter sobre ela.


O final é abrupto e esquisito e ambíguo - insatisfatório, na verdade. A narrativa poderia ter explorado inúmeras outras situações, mas acaba por se focar, talvez demais, na inveja que Irene tem de Clare. Faz uma exploração algo superficial, mas interessante, das questões emocionais em torno de um reencontro após mais uma década que acaba por trazer novas perspectivas a ambas as mulheres, bem como de questões de raça, classe social, amizade e talvez mesmo sexualidade.


Algo frustrante, talvez, é o facto de nunca sabermos os sentimentos de Clare - é certo que ela escolheu o passing como modo de vida, mas nunca temos a certeza das suas angústias, ou se realmente procura uma parte de si nas festas de Irene (ou se é só por diversão). 


Livro interessante, mas não memorável.


3/5


Podem comprar uma outra edição em inglês na wook ou na Bertrand. Aparentemente, não se encontra disponível em português.



Comentários

  1. Fiquei bastante curiosa, sobretudo pela temática. E que maravilhosa edição, essa capa é linda!
    É uma questão difícil de conseguir perceber na totalidade para nós que somos brancas e não passamos por discriminação em função da cor da pele. Não sei se te recordas, mas o Trevor Noah fala disso no início da memoir dele, sendo filho da uma mãe negra e pai branco, que também ele já experienciou momentos de 'passing', em que parece que é demasiado claro para ser negro, mas demasiado escuro para ser branco, e acaba por haver um certo nível de discriminação de ambos os lados.

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    1. a capa é bonita mas a lombada não tem qualquer informação, o que me apoquenta! :( o livro também não é de bolso... vicissitudes de comprar online :p
      devo confessar que ainda não peguei no livro do trevor noah (oooops), mas já o vi falar sobre isso, sim - e sobre o misto e conflito de identidade que daí advém. a jean rhys no "wide sargasso sea" (que é maravilhoso) também aborda não o passing, mas a discriminação por nunca ser "suficiente" quando se é biracial.

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  2. Aleluia que mais alguém não fica impressionado com este livro! Apesar de preferir livros curtos, este não dá espaço para nada, nem para desenvolver as personagens nem para um final decente em vez daquela coisa precipitada e melodramática. E a relação entre as duas mulheres é pavorosa, digna de telenovela. A Irene, que é uma dondoca, decide dar cabo da vida da outra só por uma crise de ciumeira. Não gosto de livros em que supostas amigas atiram as outras para debaixo do comboio por causa de homens, sobretudo escritos por mulheres. Acho que o Vanishing Half só aproveitou a ideia do "passing", mas como isso é uma atitude e não uma ideia com direitos de autor da Nella Larsen, levou-a mais longe. Espero que gostes quando lá chegares.
    Paula

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    1. Acho que focou demasiado na relação entre ambas e os ciúmes de ambos os lados - se, por um lado, até acho interessante que a Irene questione se Clare "terá mais" do que ela por causa do "passing"... acredito mesmo que surjam muitos conflitos de identidade e "do próprio". Mas a partir do momento em que se questiona se ela será mais atraente por esse motivo, enfim, né? Perde-se um bocado...
      Sim, não é um conceito inventado por ela, além de que há "passing" em muitas comunidades, até, e nem sempre é um conceito visto como positivo (transexuais, por exemplo, têm o mesmo tipo de ambiguidade quanto ao "passing"). Apenas preferi começar pelo livro mais antigo e mais curto que fale da relação de duas mulheres com o "passing" ou a falta dele :)

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