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Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica

O tema do #lerosclássicos2021 de Agosto era um livro censurado ou banido. Eis um livro cuja história, para mim, em muito excede o conteúdo.



Já por cá falei, inúmeras vezes, da minha relação com poesia. A verdade é que a minha curiosidade com este livro foi sempre mais histórica do que exactamente literária. Recomendo, desde já, caso nunca o tenham feito: vejam a série "3 Mulheres", disponível na HBO, que fala de Natália Correia, Snu Abecasis e Maria Armanda Falcão (Vera Lagoa); grande parte do relato sobre Natália, nesta série, versa precisamente sobre a edição e publicação da obra que hoje vos trago, bem como as suas consequências.

Em Dezembro de 1965, foi publicada, pela Editora Afrodite, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, na qual Natália reuniu poemas (e não só! Há textos em prosa) de autorias diversas, desde a Idade Média até a poetas seus amigos e contemporâneos. Saliente-se, desde já, que há apenas quatro mulheres representadas na Antologia, incluindo a própria Natália - que teve o cuidado de trazer para a edição nomes respeitabilíssimos como Luís de Camões, Almeida Garrett, Fernando Pessoa..., ancorando-se na tradição do escárnio para justificar a vertente satírica.

Cosmocópula

I

Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras

II

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso da água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro.

 -- Natália Correia

Como expectável, uma obra de tamanho pendor escandaloso foi rapidamente apreendida pela PIDE, e os escritores e poetas Mário Cesariny, Luiz Pacheco, José Carlos Ary dos Santos, Ernesto de Melo e Castro e o editor Fernando Ribeiro de Mello, juntamente com Natália Correia, foram julgados e condenados em tribunal, num processo moroso, que se arrastou durante anos, e no qual apenas o lado erótico foi trazido a julgamento, com receio que a crítica política tomasse demasiado protagonismo.

Ribeiro de Mello previa já este destino, tendo inclusive preparado uma "edição pirata", simulando origem brasileira, de modo a manter a obra em circulação; e Natália preparou a sua defesa em tribunal numa intervenção em forma de poema (como fez mais tarde em Assembleia).

O conteúdo, volto a dizer, não me desperta particular interesse - tem alguma piada, é certo, e não sabia que as freiras outrora tinham sido musas de poesia erótica. Foi também interessante ter aqui uma primeira abordagem a alguns nomes que nunca tinha lido. De particular interesse, nesta edição da Ponto de Fuga, é o texto introdutório do editor, Vladimiro Nunes, que recorda e documenta algum do processo de elaboração do livro, bem como da perseguição de que Natália foi vítima durante o Estado Novo.

4/5


A edição aparece esgotada em tudo quanto é sítio, mas falem com a editora. 



Comentários

  1. PG-18? Ah ah! Gostei de conhecer os bastidores deste livro, mas este género de poesia nua e crua não faz o meu género.
    Portanto, estávamos em sintonia, porque O Despertar da Kate Chopin, ainda que de forma mais subtil, também tem a ver com o desejo feminino.
    Paula

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    Respostas
    1. achei mais risível que propriamente erótico, mas as minhas sensibilidades podem não ser propriamente medievas :D
      gostei bastante desse, quando o li juntamente com alguns contos dela!

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    2. Já agora, a quem interessar este livro, vi-o à venda na FLL na banca em frente à Sistema Solar. Edições Avante, talvez?
      Paula

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    3. Não seria a banca da Ponto de Fuga, mesmo? Estão algures para esses lados, e ainda têm alguns exemplares, colocaram como livro do dia e tudo!

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  2. Gostei muito da série e de ler o post, que me fez relembrar a série, está muito bem escrito
    É uma obra gigante e maioritariamente poética pelo que também não tenho curiosidade em ler pois poesia não é a minha praia, o meu corpo é a minha praia, mas toda a história à volta da criação e publicação da obra fascina-me
    O poema que reproduziste é o teu favorito da antologia?
    E os poemas do Luiz Pacheco, gostaste? Esse era uma personagem na série

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    Respostas
    1. pois, entendo bem a falta de curiosidade, precisamente pelo mesmo motivo - o teu corpo o quê? :ooooooooo
      não tenho necessariamente um favorito, coloquei esse por ser da própria natália!
      tens de ler, ora :p

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