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The Kreutzer Sonata

Relendo obras numa leitura conjunta com o meu amor, que encaixa também perfeitamente com o #russialit.


O meu primeiro Tolstoy foi o War and Peace, que li no ano em que escrevi uma tese sobre um estudo de caso da Rússia. Foi um ano de Tolstoy, Bulgakov, Nabokov e Pushkin, porque claramente não me fico por projectos pequenos.

The Kreutzer Sonata não é uma telenovela recheada de bailes e trocas de noivos - mas talvez seja engraçado comparar a futilidade amorosa de Natasha com esta obra. Aqui acima de tudo temos o lado moralista de Tolstoy: o discurso furioso de um homem que expressa visões assustadoras sobre o amor, o casamento, a sexualidade.

Uma longa viagem de comboio, um grupo de estranhos na mesma carruagem. Começa uma conversa sobre o amor; alguns dos passageiros saem; e ficam apenas Pozdnyshev, um homem de alguma idade que demonstrara ter visões cépticas e agressivas acerca da existência do amor e da funcionalidade do casamento, e o narrador.

Let us stop believing that carnal love is high and noble and understand that any end worth our pursuit - in service of humanity, our homeland, science, art, let alone God - any end, so long as we may count it worth our pursuit, is not attained by joining ourselves to the objects of our carnal love in marriage or outside it; that, in fact, infatuation and conjunction with the object of our carnal love (whatever the authors of romances and love poems claim to the contrary) will never help our worthwhile pursuits but only hinder them.

Estamos perante uma novella extremamente sexista, cristã e anti-tudo aquilo em que acredito sobre um homem que assassina a sua mulher numa espécie de crime de honra. Como é que se passa de amante devoto a assassino em poucos anos de casamento?

Pozdnyshev relata a sua história, numa espécie de defesa da abstinência, alegando repulsa pelas manifestações físicas do amor (algo que, antes do casamento e do homicídio que cometera, não tinha em má consideração, sendo de certa forma um Don Juan) - e alegando também ter escolhido a sua esposa pelo seu aspecto num vestido justo.

As soon as a young man advances toward a woman, directly he falls under the influence of this opium, and loses his head. Long ago I felt ill at ease when I saw a woman too well adorned,—whether a woman of the people with her red neckerchief and her looped skirt, or a woman of our own society in her ball-room dress. But now it simply terrifies me. I see in it a danger to men, something contrary to the laws; and I feel a desire to call a policeman, to appeal for defence from some quarter, to demand that this dangerous object be removed.

Pozdnyshev conta ao narrador como a sua esposa era, basicamente e como todas as mulheres, um objecto de desejo e pouco mais - e que, ao ser proibida de engravidar após ter tido cinco filhos, ficara destituída das virtudes da abstinência, e que, na sua vaidade, seduzia vários homens. É um relato cego de ciúme que culmina num dueto musical, em que a esposa tocava com outro homem a Sonata a Kreutzer, de Beethoven. Em consequência deste acto, e para aliviar o sentimento de desconfiança, acaba por matar a esposa, sem nunca saber se a traição fora mesmo real.

I wanted to run after him, but remembered that it is ridiculous to run after one's wife's lover in one's socks; and I did not wish to be ridiculous but terrible.

Há muita raiva nesta história no que se refere a expectativas entre géneros, e a narrativa enfurece-me profundamente. Pozdnyshev procura, de certa forma, a redenção ao contar a sua história a desconhecidos num comboio, mas não é um simples relato: é uma lição de moral, uma tentativa de inculcar um estilo de vida. É moralista, muito.

4/5

Podem comprar uma outra edição aqui, ou em português aqui.

Comentários

  1. Muito moralista sim, é Tolstoy :p eu como sabes gostei muito, e achei muita piada a certas referências, tanto a do I wanted to run after him, but remembered that it is ridiculous to run after one's wife's lover in one's socks; and I did not wish to be ridiculous but terrible como a I see in it a danger to men, something contrary to the laws; and I feel a desire to call a policeman, to appeal for defence from some quarter, to demand that this dangerous object be removed.
    O ciúme é intemporal e dos sentimentos mais fortes, o Pozdnyshev sabia o que estava a fazer e podia não o ter feito, apenas se deixou levar pelo poder da raiva, do ódio, basicamente entregou-se ao dark side, foi o caminho mais fácil, e quantos são fracos a esse ponto? Ele não queria ser como os outros e ter uma mulher só por ter, porque tinha de ser, por estatuto, riqueza e afins, queria ser um bom marido e ser devoto a ela e as acções dela não ajudaram em nada, ambos contribuíram para um mau casamento, ele até lhe disse para ela se ir embora, se não dava que se separassem, ela ficou para continuar a provocá-lo, ele não tomou a melhor acção mas é assim a vida, ninguém é perfeito, ele estava num momento obscuro, pensou em suicídio até, foi bastante humano para o bem e para o mal. É tarde, fui correr como sabes e provavelmente tudo o que escrevi não faz sentido mas li a review, gostei muito e quis comentar :p

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    1. tantos comentários :o

      "Ele não queria ser como os outros e ter uma mulher só por ter, porque tinha de ser, por estatuto, riqueza e afins, queria ser um bom marido e ser devoto a ela"

      eu não senti isto de todo! :( ele diz que escolheu a mulher com base em ela ficar bem no vestido que tinha no baile onde a conheceu :/ não digo que ela tenha tido as melhores atitudes, mas não senti que, em modo algum, as intenções dele relativamente ao casamento fossem nobres :(

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    2. Sim mas eu referia-me ao facto de todos os outros enganarem as mulheres, ninguém se casava por amor, era tudo muito mecânico, era mesmo um contrato e ele queria ser diferente

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  2. Tanto que no início se fala que o divórcio na Europa ocidental já era uma coisa normal mas que na Rússia isso demoraria muito, se quando, a ser considerado normal. Estou a fazer o papel de advogado do diabo sim mas lá está, o homem trabalhava, a mulher não fazia nada, ele chega a casa à noite e ela está com ele? O músico podia não ser amante dela, não sabemos ao certo, mas é um homem no fim de contas com menos honra e princípios que o Pozdnyshev. E a mulher mentiu ao marido, disse que iria cortar as relações (sejam elas de amizade ou mais) pelo simples facto de aborrecer o marido, porque ela não via como o marido podia considerar o músico uma ameaça sendo ele um homem tão banal. No entanto continuava a vê-lo, à noite, quando o marido está fora, até os empregados viam com maus olhos.
    Não há justificação para o que o Pozdnyshev fez mas face às circunstâncias do tempo (para referir as questões de género, apesar de ele criticar o facto de os homens terem todo o poder na altura e as mulheres terem de se contentar em arranjar um marido, era esse o seu purpose, que lhes desse uma boa vida, era assim que eram educadas e por muito mau que seja sabemos que era assim naquele tempo) e do espaço para mim, o Pozdnyshev era a pior pessoa das três, à excepção das outras duas.

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    1. novamente :$ não acho que ela tenha tido boas atitudes, de todo! mas embora as mulheres fossem educadas para arranjar marido, a verdade é que muita literatura da época retrata casamentos arranjados, etc, nos quais há algum companheirismo, e não repulsa; ele diz que o propósito das mulheres é arranjar marido para que possam basicamente ser ninfomaníacas dentro de casa, ou seja, não é uma questão cultural ter como único objectivo arranjar marido, mas uma questão... fisiológica e da natureza das mulheres. ele também diz que as mulheres usam sexo para controlar os homens, e que apesar da "submissão" geral são elas que, por esse motivo, têm poder :/ é uma subversão super bizarra :(

      p.s. o Guerra e Paz não é moralista :p

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    2. Sim mas eu acho interessante esse ponto, que apesar de tudo quem tinha poder eram as mulheres, ele via isso e tem razão, queiram elas ou não e isso foi o inicio do fim para um homem que queria ser diferente mas era igual a muitos

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  3. E eu sei que é forte dizer isso mas como sabes dou mais importância aos pequenos esforços de todos os dias do que a um grande esforço num momento só. Ele cometeu um erro, foi um grande erro, mas os outros cometeram pequenos erros todos os dias. O Pozdnyshev era um homem simples, queria ser feliz, não o estava a ser então que ficasse sozinho, a mulher fica mas não com o intuito de ajudar a salvar o casamento, pagou o derradeiro preço, não o merecia, ninguém o merece mas o Pozdnyshev era humano e lá está, o espaço temporal vale para os dois lados, ele não podia deixar a situação passar impune, ou se matava ou matava a mulher. Era fraco either way, estava entre a espada (get it?) e a parede, estava consumido pelas trevas já, era inevitável, mas ele sempre soube e desabafa sim, no comboio, para a redenção mas essa redenção consiste também em passar a palavra para que outros não se entreguem ao poder do ódio.

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    1. Tolstoy:

      "Let us stop believing that carnal love is high and noble and understand that any end worth our pursuit -- in service of humanity, our homeland, science, art, let alone God -- any end, so long as we may count it worth our pursuit, is not attained by joining ourselves to the objects of our carnal love in marriage or outside it; that, in fact, infatuation and conjunction with the object of our carnal love (whatever the authors of romances and love poems claim to the contrary) will never help our worthwhile pursuits but only hinder them." by Tolstoy a explicar o propósito desta obra :(

      quanto a ciúmes - percebo; crimes de honra confesso que não percebo. percebo que tenha chegado a um nível extremo, percebo o dark side! perceberia se ele o baseasse em ideias de ciúmes, mas não percebo a mentalidade de repulsa humana que ele transmite ao longo de toda a história :( e é isto, leitores diferentes fazem leituras diferentes :p

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    2. Claro, mas até ter ciúmes a sua vida era como tantas outras da época, o ciúme levou a esse ódio.

      “Fear is the path to the dark side. Fear leads to anger. Anger leads to hate. Hate leads to suffering.”
      – Yoda

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  4. Porque ele a amava e odiava, o amor às vezes é um presente envenenado, vive-se tão intensamente que nada mais importa e tal como ela o fazia sofrer de propósito ele desceu a esse nível e fez o mesmo e mais, não se matando porque não podia ver a reacção da mulher e porque só a ia satisfazer mas assassinando a mulher, distribuindo felicidade a ninguém. Dark side é complicado

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    1. http://www.online-literature.com/tolstoy/kreutzer-sonata/29/ :p texto completo em que o autor clarifica as suas intenções!

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    2. Obrigado Ba :p hei de ler, mas há muitas vezes no leitor uma percepção diferente da que o autor quis transmitir, não quer dizer que seja errada por si

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    3. claro que não! como disse acima, leitores diferentes fazem leituras diferentes, o que não invalida nenhuma - mas é sem dúvida interessante ler o que o próprio autor tem a dizer!

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