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Travels with Charley

John Steinbeck não estava no seu melhor quando, em 1960, decidiu fazer uma viagem à volta dos EUA.


Este mal estar não era apenas físico (ele morreria oito anos mais tarde, de condições cardíacas), mas psicológico: a condição do seu país, o seu lugar no mesmo, o facto de estar a escrever sobre um país que não vê há mais de 20 anos e uma forte dose de wanderlust. A viagem, assim, começa em Long Island, New York, onde ele mora.

Para alterar esta situação, Steinbeck, de 58 anos, arranja uma carrinha/caravana personalizada, com cama, frigorífico e casa de banho, à qual chama de "Rocinante", como o fiel cavalo de Dom Quixote.  O plano era reconectar com um país que tinha feito parte da sua ficção, tentar compreender o quanto os Estados Unidos da América tinham mudado ao longo dos anos. O resultado da viagem é este livro: parte memória, parte travelogue, parte ficção (foram, recentemente, descobertas discrepâncias estranhas e vastas na narrativa de Steinbeck; no entanto, e para mim, este conhecimento não diminui a leitura do livro).

Após semanas de planeamento, afasta-se relutantemente da sua esposa e dirige-se para o Maine. Consigo, leva o seu poodle francês, Charley, que podemos ver na capa da minha edição do livro. Em Rocinante, Steinbeck leva comida, álcool, canas de pesca e armas - porque assim, poderia justificar a sua viagem, for it is my experience that if a man is going hunting or fishing his purpose is understood and even applauded.

Steinbeck segue uma rota circular em torno do país, começando no nordeste (New York, como mencionado acima), até ao Pacífico, descendo para Salinas, na sua California natal, Texas, New Orleans e de volta a New York. Um esquema da viagem pode ser visto aqui:


Durante a viagem, regista aquilo que vê e as pessoas que encontram, oferecendo assim um relato e um retrato dos Estados Unidos de 1960 - notando aquilo que mudou, e o que se manteve desde a última vez que ele visitara essa parte do país.

Can it be that we do not love to be reminded that we are very young and callow in a world that was old when we came into it? And could there be a strong resistance to the certainty that a living world will continue its stately way when we no longer inhabit it?

Já li o outro grande clássico americano de viagem pelo país (sim, estou a falar do Kerouac - mencionei aqui a minha experiência com On the Road, que já li há cerca de dez anos). E talvez seja porque, em duas experiências de Kerouac e quatro (agora cinco) de Steinbeck, sempre preferi o Steinbeck, mas esta é, para mim, uma viagem melhor. É um melhor relato de um homem a viajar pelos EUA, com olho para o detalhe, com maravilhosas descrições daquilo que vê e daquilo que experimenta. A capacidade que Steinbeck tem de tornar as suas experiências quase palpáveis ao leitor faz deste livro mais que um simples travelogue.

I saw in their eyes something I was to see over and over in every part of the nation- a burning desire to go, to move, to get under way, anyplace, away from any HERE. They spoke quietly of how they wanted to go someday, to move about, free and unanchored, not toward something but away from something. I saw this look and heard this yearning everywhere in every states I visited. Nearly every American hungers to move.

Não esqueçamos que o livro se chama Travels with Charley - Charley, a única companhia que Steinbeck levou (melhor: que assume ter durante a viagem - mais sobre isso mais tarde) na viagem, é uma óptima personagem e acresce imenso à narrativa, sendo protagonista de várias peripécias (desde ursos a uma infecção chata na próstata). Charley é claramente uma grande fonte de conforto para Steinbeck durante a viagem.

I took one companion on my journey - an old French gentleman poodle known as Charley. Actually his name is Charles le Chien. He was born in Bercy on the outskirts of Paris and trained in France, and while he knows a little poodle-English, he responds quickly only to commands in French. Otherwise he has to translate, and that slows him down. He is a very big poodle, of a color called bleu, and he is blue when he is clean. Charley is a born diplomat. He prefers negotiation to fighting, and properly so, since he is very bad at fighting.

O Charley é maravilhoso.

Há dois momentos de destaque na viagem (para mim, pelo menos - embora pense que um deles será um ponto essencial da narrativa para a maioria dos leitores). O primeiro, mais positivo, mais leve, e quiçá menos determinante: a sua descrição da floresta de sequóias no Norte da California (e a forma como Charley não quer saber das árvores gigantescas).

The redwoods, once seen, leave a mark or create a vision that stays with you always. No one has ever successfully painted or photographed a redwood tree. The feeling they produce is not transferable. From them comes silence and awe. It's not only their unbelievable stature, nor the color which seems to shift and vary under your eyes, no, they are not like any trees we know, they are ambassadors from another time.

Absolutamente incrível.

O outro momento acaba por ser o culminar da viagem de Steinbeck: em New Orleans, decide assistir à manifestação das "The Cheerleaders". Eu não sabia nada sobre este evento (e tive de pesquisar posteriormente, para o compreender melhor): um grupo de mulheres que se reunia, diariamente, numa escola primária recentemente "integrada" (ou seja, não-segregadora, multi-racial), de modo a ameaçar e a tentar afastar crianças negras. Mulheres brancas novas, trabalhadoras. Pais que tinham retirado os seus filhos das escolas - os poucos que não se importavam e que não tinham boicotado a escola eram igualmente ameaçados. É dos relatos mais deprimentes, poderosos e demonstradores do racismo no Sul dos Estados Unidos.

The Problem We All Live With, de Norman Rockwell, ilustra Ruby Bridges, uma miúda de seis anos que tinha de ir escoltada para a escola

These blowzy women with their little hats and their clippings hungered for attention. They wanted to be admired. They simpered in happy, almost innocent triumph when they were applauded. Theirs was the demented cruelty of egocentric children, and somehow this made their insensate beastliness much more heartbreaking. These were not mothers, not even women. They were crazy actors playing to a crazy audience.

Pouco depois, Steinbeck decide dar a sua viagem por terminada, e regressar a casa, em New York, dando a ideia do quanto o evento o terá afectado.

O meu receio, apesar de tudo, era que o livro me aborrecesse: literatura de viagem nunca me apelou particularmente, não obstante o quão bonito pudesse ser o cenário (e os Estados Unidos nem são o local que mais me interessa...), porque muitas vezes são relatos pessoais, não facilmente transponíveis ou passíveis de ser vividos por terceiros. Mas este não era um viajante qualquer: era John Steinbeck.

Sobre a falta de veracidade do relato: um jornalista, Steigerwald, terá descoberto vários buracos e falácias em Travels with Charley. Um dos pontos é que ele não terá cortado tanto assim com os seus confortos caseiros, encontrando-se com a esposa muito mais vezes do que aquelas que menciona, e dormindo muito mais vezes em hotéis do que em Rocinante. Acho bonito o quão apegado à esposa, Elaine, Steinbeck era. Possivelmente muito do sucesso da viagem prendia-se com a capacidade de estar com a esposa. Aceito isso.

Muitos dos diálogos podem também ter sido "melhorados" - não só porque parece que Steinbeck só nos conta sobre o pior que existe nos EUA, mas porque parece difícil reproduzir diálogos, palavra por palavra, sem ter feito da conversa uma peça jornalística, tirado notas.

Mas isso não me importa: não acho grave que o relato tenha sido "editado" de modo a parecer que Steinbeck tinha menos conforto, que estava sozinho com Charley a maioria do tempo, que as conversas sejam mais ficção que reportagem. Está maravilhosamente escrito (e nem me parece a melhor obra de Steinbeck, nesse aspecto), tem paixão, tem humor.

E tem o Charley. Já disse que o Charley era maravilhoso?

4/5

Podem comprar esta edição na wook, na Book Depository ou na Bertrand; ou em português, na wook ou na Bertrand

Comentários

  1. Sempre achei que os homens nesse quadro, cuja cabeça não se vê, fossem activistas negros (se reparasse melhor nas mãos, não me precipitaria nessa conclusão), mas não, eram agentes federais brancos, enviados pelo Presidente para a escoltar até à escola. Impressionante! Há um vídeo da Ruby Bridges numa palestra da Fundação Francisco Manuel dos Santos muito interessante.
    Ainda não li este livro, mas cada vez mais acho que as memórias e as autobiografias no geral são autoficção. Sabemos lá nós, até alguém desmascar o autor, se ele não está a inventar ou a colorir os factos. Olha o Thoreau com o "Walden": a apologia da solidão no mato e tal, mas estava a uns metros de casa, onde ia comer, e dos amigos, que ia visitar com frequência. O escritor é que é mesmo um fingidor! ;-)
    Paula

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    1. *desmascarar

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    2. Muito impressionante. E o detalhe de dizer "nigger" na parede atrás? É uma imagem fortíssima! Tenho de descobrir esse vídeo :) acho fascinante como ela cresceu e se tornou uma voz tão activa, para além do mero símbolo deste período.
      Sim, concordo - é tudo "embellished", tudo o que não interessa é retirado, muitas coisas serão escritas de maneira a ser mais interessantes. Faz parte! Mas nem acho necessário "desmascarar"... percebo, em nome da verdade, mas não sei - a não ser em certos casos (em que pessoas procurem a fama por escritos escandalosos, por exemplo - como por exemplo JT Leroy, vá), não me parece necessário.
      Não sabia isso do Thoreau :) ainda não o li, mas, quando acontecer, terei isso em mente :D

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  2. Que boa review :) Comprei este livro mas estava com medo de não gostar (nunca li Steinbeck...). Fiquei com vontade de pegar nele quando acabar o que estou a ler.

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    1. Este não foi o meu Steinbeck preferido - o meu preferido é o Of Mice and Men. Também tenho para aqui no blog uma opinião sobre o Cannery Row :) para quem gosta de não-ficção, o Travels with Charley será uma boa aposta!

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  3. Não li este livro, tenho medo de ler um livro de viagens tão distante no tempo que deve dar uma imagem histórica bem diferente da atual, mas talvez ajude a compreender o presente.
    Nâo gostei The road de Kerouac, bem escrito mas com uma filosofia de vida que eu não defendo.

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    1. Eu gostei do retrato do início dos anos 60, da voz de não-ficção de Steinbeck.
      Sinto precisamente o mesmo quanto ao On the Road, do qual também não fiquei fã: escrita interessante, filosofias com as quais não me identifico.

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