Terminei o primeiro de muitos livros a ser lidos em simultâneo.
Como mencionei no meu resumo mensal, Ta-Nehisi Coates seria uma estreia para mim, quer me iniciasse na sua ficção ou não-ficção, que encomendei e chegou à minha estante sensivelmente na mesma altura que este. Acabei por optar por A Dança da Água, por ter mais facilidade e hábito de ler ficção, e por ser um lançamento que me andava a entusiasmar. Esta é também a estreia do autor em ficção.
É difícil escrever sobre este livro, na verdade. Seguimos a história de Hiram "Hi" Walker, que nos é contada pelo mesmo, na primeira pessoa, em retrospectiva. O jovem Hiram, nascido na propriedade de Lockless (nome irónico), na Virginia do tempo da escravatura, sabe ser filho de uma escrava, Rose, de quem não se recorda, e do proprietário da plantação de tabaco. Aqui, existem dois grupos de pessoas: os "Incumbidos" (Tasked, no original inglês), como quem diz, os escravos, e o "Poder" (Quality), os mestres, brancos. Na arbitrariedade macabra de um sistema assim, Hiram acaba por se tornar no servo pessoal do seu meio-irmão, o filho legítimo da casa, Maynard.
Hiram mostra várias qualidades, entre as quais, memória fotográfica. Assim, parece sempre bizarro e misterioso como não consegue recordar nada sobre a sua mãe, que teria sido vendida quando ele tinha nove anos, e este tema é central ao longo da narrativa. As suas várias capacidades intelectuais são reconhecidas pelo seu pai, mas não recompensadas - e são, aparentemente, indirectamente comparadas à inaptidão geral de Maynard, que é uma enorme desilusão. No entanto, tem também outro dom, que começa a vir ao de cima quando uma experiência de quase morte começa a alterar as suas perspectivas sobre a sua vida.
E, a parte mais difícil, é que esta nova perspectiva lhe mostra que não pode permanecer na plantação.
Este é um livro que toca no tema da escravatura, de forma especialmente complexa no que respeita à psicologia dos escravos e aos diversos horrores da escravatura. Com um enorme foco em questões como a memória, o folklore e a perda, o livro mistura a ficção histórica com o realismo mágico, uma abordagem que me despertava particular interesse.
Hiram tem um poder relacionado com a água e com a memória, uma capacidade que, juntamente com a memória fotográfica, o tornaria fundamental no Underground Railroad, uma organização que ajudava a levar escravos para o Norte de modo a viverem livres. Para mim, no entanto, esta característica (aquela que me cativava mais na obra) deixa um pouco a desejar, pois os elementos fantásticos, apesar de baseados numa ideia fascinante, acabam por não estar muito desenvolvidos, e não se encaixam na narrativa - perdem-se no meio da narrativa algo tradicional sobre os problemas da escravatura e sobre o Underground Railroad. Eu sei que pode ser estranho, tendo em conta que não é um género que eu costume ler - mas acho que esperava mais fantasia.
Quando Hiram, no fim, descobre a chave para a memória da sua mãe, acaba por saber a pouco - o momento que fora mencionado ao longo de mais de 300 páginas acaba por ter um clímax fraco, de potencial perdido.
Há outro ponto que não me satisfez: o tratamento de Harriet Tubman. Já aqui escrevi sobre o que penso de ficção histórica que inclui pessoas que existiram mesmo e as torna em personagens de ficção; acredito e aceito que este ponto seja muito subjectivo e possa não incomodar muitas pessoas, pois não gosto quando são atribuídas falas, momentos ou até mesmo personalidades a indivíduos reais. Mas não sei se atribuir um "superpoder" a Harriet Tubman poderá de certa forma minorar os seus feitos estrondosos (ainda que não seja essa a intenção).
Continuo, no entanto, satisfeita com a leitura - aprendi muito que não sabia sobre o Underground Railroad, e achei interessante a forma como aborda outros tipos de discriminação e lutas sociais, não obstante o tema central. A abordagem psicológica acaba por se destacar muito na obra, a introspecção e as várias interpretações de liberdade por parte dos vários personagens - o sonho de liberdade de um não será aplicável a outro. A forma como a escravatura foi perpetuada através da desumanização das pessoas de cor, através da falta de empatia. E a forma como "casa" deixa de ser um lugar.
Enquanto literatura de ficção, também pela falta de foco da narrativa, não funcionou para mim da melhor maneira, no entanto - o que só me deixa com mais vontade de ler Entre o mundo e eu.
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