Um portento.
As quase 700 páginas e a capa belíssima intimidam. E a verdade é que este não é um livro para ser lido de ânimo leve, não pela dimensão, mas pelas temáticas abordadas.
Tendo-o terminado há uns dias, afirmo que Habibi é um livro que fica com o leitor. Habibi é uma obra sobre o amor nas suas várias formas, e enquanto valor maior. É violento, é brutal, tem arte magnífica entrelaçada com uma narrativa construída de forma brilhante e desconfortável. A palavra habibi significa "meu amado" (ou algo para esse efeito), e o livro mostra-nos como, no meio de violência sexual, escravatura, homicídios e haréns, o amor consegue sair, não vitorioso, mas, de alguma forma, enaltecido.
E é, potencialmente, uma obra controversa. Vi várias opiniões nos últimos dias que falam de sexismo, orientalismo, racismo, apropriação cultural. Sobre a forma como a imagem do corpo feminino é usada e explorada ao longo da obra - quando é que as imagens sexualizadas, utilizadas para levantar questões sobre o sexismo, se tornam sexistas?
Na minha opinião, a obra é tão profundamente desconfortável, e levanta tantas questões, que leva ao desejo de mais informação, e não aos potenciais efeitos negativos. Como a boa literatura, geralmente, faz.
Situado num tempo indefinido, entre as aldeias, os haréns e as cidades modernas de algures no Médio Oriente, Habibi segue a história de dois escravos fugitivos, que se conheceram em crianças, por mero acaso. Conhecemos a heroína, Dodola, de olhos grandes, no momento em que ela é vendida - como noiva - a um escrivão que, ao contrário do habitual, a ensina a ler, a escrever, e histórias do Corão. Dodola tem nove anos, e logo de início não somos poupados à crueldade do seu destino. A sua relativa paz termina rapidamente, quando, aos doze anos, é raptada para ser vendida como escrava. E é aqui que conhece Cam, a quem chamará de Zam, um menino de três anos.
Dodola e Zam sobrevivem por confiarem e dependerem um do outro - num barco atolado num mar de areia, Dodola contando histórias, durante os nove anos seguintes, que esconderão de Zam o horror do qual ela não consegue escapar. O deserto, o barco abandonado, acabam por significar a inocência e a pureza da pouca infância que ambos tiveram, que lhes fora roubada; Zam é, para Dodola, um irmão, um filho - a relação de ambos é profundamente complexa, e muda ao longo do livro de várias maneiras.
A história de Zam e Dodola, que lutam para ficar juntos e fugir dos aspectos mais sinistros da sociedade em que vivem, é enternecedora e dolorosa de ler. Aparece intercalada com várias histórias do Corão e da cultura árabe, histórias que Dodola conta e que levantam questões sobre fé e religião, bem como sobre relações interpessoais. A religião tem, efectivamente, um papel central na história, mas sem "escolher lados": foca-se bastante nos pontos comuns entre o Cristianismo e o Islão, nas suas raízes comuns.
Parece quase stream of consciousness, entre o passado e o presente, entre as histórias e a vida dos personagens, entre o real e o abstracto.
O outro ponto controverso será a forma como Dodola é frequentemente retratada nua - objectificada, sim, por força das circunstâncias que levam à sua nudez, mas os alvos e as vítimas da escravatura, da prostituição, do abuso e da violência são aqui humanizados. Dodola não é um receptáculo de desejos sexuais, como Druuna era; Dodola é real, humana, sofre, tem traumas emocionais complexos e que entram em conflito com o seu corpo. A violência, a miséria, não são glorificadas.
Além da narrativa: a arte. É sublime, e de certo modo previne o leitor de ficar demasiado devastado com a leitura. Tendo a ler novelas gráficas talvez demasiado rápido, algo que não é totalmente possível numa obra desta dimensão e com tanto detalhe em cada página. Há estudos sobre a caligrafia árabe, páginas com cantos intrincados, fórmulas matemáticas, símbolos visuais vários. Tudo isto enquanto arte. É detalhado e belo.
5/5 Imperdível
Partilho a opinião. :)
ResponderEliminarImporta muito mais a abordagem que o tema, não é? Não há temas problemáticos...
EliminarNunca tinha visto este livro, ou então ando muito distraída...
ResponderEliminarDeve ser brutal (em todos os sentidos!)
Acredito que este livro deve ser dos tais que quando acabas tens de parar, reflectir no que leste para absorver e até fazer o "luto" deste livro para poderes partir para o próximo...
Beijos e abraços.
Sandra C.
Bluestrass
É, de facto, um livro muito difícil de ler, mas lindíssimo - e fica presente após a leitura. É maravilhoso, e recomendo.
EliminarEsta review cativou-me!
ResponderEliminarE, garanto, não fiz justiça ao livro :)
EliminarNão conhecia este livro. Fiquei muito curiosa com a review. Depois de ler Maus e Persepólis ando com vontade de continuar a ler novelas gráficas.
ResponderEliminarHá muita coisa muito boa por aí :) esta, não sendo uma memória como essas, recomendo na mesma a quem gostou delas. Tenho lido cada vez mais BD e novelas gráficas e tenho gostado muito.
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