Mais uma leitura à qual cheguei através do clube de leitura em eespanhol da BLX (embora tivesse curiosidade com a autora há anos) - julgo que teria preferido conhecer Mariana Enriquez pelos seus contos, mas comecei por A Nossa Parte da Noite.
Juan, um homem que rapidamente nos apercebemos ter problemas de saúde, está numa longa viagem de carro com o seu filho de seis anos, Gaspar, após a morte num acidente terrível de Rosario, a esposa e mãe que completava esta família. A narrativa não nos é, porém, apresentada de forma linear; o leitor tem de orientar ao longo destas cerca de 600 páginas.
Rapidamente nos apercebemos, também, que há algo de sobrenatural e de terror nesta obra:
O corredor do hotel estava muito escuro e cheirava a humidade. O quarto ficava mesmo na esquina, ao pé da escada. Juan deixou Gaspar sair primeiro e o rapaz, em vez de descer diretamente, correu pelo corredor. No início, Juan pensou que o filho ia para o elevador. Mas depressa compreendeu que Gaspar se apercebera do mesmo que ele, embora a diferença fosse radical: em vez de evitá-la - Juan estava tão acostumado àquelas presenças, que as ignorava -, foi atrás dela, atraído. O que se escondia ao fundo do corredor estava assustado e não era perigoso, mas era antigo e, como tudo o que é muito velho, era voraz e infeliz e invejoso.
Além de ser um poderoso médium, Juan é também o conduto utilizado por uma seita chamada "A Ordem" para contactar uma entidade demoníaca. Esta Ordem é composta pelos estratos mais ricos e poderosos da sociedade argentina, que procuram contactar com o demónio para alcançar os seus fins - mais riqueza, mais poder, acima de tudo imortalidade (curiosamente também tema em Mexican Gothic). Rosario era parte dessa Ordem; Juan tem com eles uma relação muito complexa, tendo sido criado por eles desde a infância, de certa dependência mas também desconfiança, e não quer que Gaspar, que se apercebe ter os mesmos dons, tenha a mesma vida que ele teve.
Apesar disto, é à casa da família de Rosario que Juan se dirige no início da obra, num local remoto e quase selvagem, em Misiones, perto do Paraguai, para mais um ritual. Cada ritual parece sugar mais da sua vida - mas Juan persevera, na tentativa de não ser substituído pelo seu filho. Estes rituais são descritos de forma gráfica e têm muita tortura presente. Muito do material é metáfora - explorado mais directamente na restante obra - da situação socio-política e história da Argentina, especialmente aquando da ditadura militar. A narrativa tem lugar entre 1960 e 1997 (sendo a roadtrip inicial em 1981), de forma não cronológica, com alguns capítulos a revisitar ou apresentar sob outra luz (ou do ponto de vista de outro personagem) eventos mencionados anteriormente.
Assim, temos os horrores literais - o capitalismo, a ditadura, a opressão do sistema sobre os mais fracos, os desaparecimentos de pessoas, a família Bradford que chegou nos 1800s à Argentina em busca de oportunidade em terra barata e fazer dinheiro à custa dos nativos - mas também vários elementos clássicos do terror e do gótico, fantasmas, demónios, body horror, seitas e rituais ocultos, mansões decadentes com passagens secretas, casas assombradas, segredos familiares.
Assim, este livro oscila entre uma saga familiar no meio de exploração e repressão política e um livro de terror sobre o oculto. É um livro pesado e profundo, sinistro.
Sinto que o livro peca pela sua dimensão, no sentido em que o livro perde vigor quando Juan sai de cena, sensivelmente a meio da narrativa, deixando demasiado espaço para acompanhar a adolescência de Gaspar com os seus amigos, material que parece que poderia ser amplamente cortado sem afectar negativamente a obra. Também não apreciei particularmente o final - aí, sim, sinto que faltaram páginas. Quero, muito, ler os contos de Mariana Enriquez, que acredito serem mais focados.
Tradução de Margarida Amado Acosta
4/5
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Não li a tua opinião para não saber muito, porque pretendo ganhar coragem e lê-lo em breve. Remetendo para o post anterior, gostava de ler a biografia que a Mariana Enriquez fez da Silvina Ocampo, La Hermana Menor.
ResponderEliminarPaula
Foi exactamente essa a ponte entre autoras que me levou a pegar neste livro na BLX há quase um ano - no clube de leitura em espanhol falou-se em Silvina Ocampo e foi mencionada a irmã mais velha, mas também a biografia que a Mariana Enriquez fez da Silvina. Esta foi a minha primeira impressão da autora e acho que teria preferido os contos, aos quais ainda não cheguei :)
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