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Caderno de Memórias Coloniais

Li este livro a convite do João, na leitura conjunta que ambos dinamizámos em Janeiro, para o seu podcast Livrólicos Anónimos, sendo que podem já ouvir o nosso episódio sobre esta obra.




Tinha há já alguns anos curiosidade com a obra de Isabela Figueiredo, e tinha ideia de que nunca a tinha lido, até ter sido, recentemente, recordada de que um dos seus contos integrou esta colecção do Expresso. Pelo que escrevi há data (há já seis anos), foi um dos meus contos favoritos da colecção, mas claramente não ficou para a posteridade.

A minha curiosidade para com a obra de Isabela Figueiredo, confesso, dirigia-se mais a A Gorda, mas também este Caderno de Memórias Coloniais me intrigava, mais não seja porque também o meu pai é retornado - tendo nascido em Luanda e vivido na então Sá da Bandeira até aos seus 12 anos, altura do 25 de Abril, quando voltou para casa. Apesar de ter um pai (e avós) retornados, nunca cresci com a ideia da abundância que os portugueses viviam nas ex-colónias: o meu avô tinha um emprego operário cá, e foi lá colocado, por ser trabalhador do Estado, não sendo, portanto, um colono latifundiário. O meu pai, tendo regressado de Angola com tenra idade, nunca fala com saudade do local onde nasceu e cresceu, tendo uma infinitamente maior afinidade com a metrópole (e com a Aldeia na qual viveu apenas cerca de sete anos).

Este meu contexto familiar será, julgo, importante para explicar a minha relação com esta obra de Isabela Figueiredo - que cresceu em Moçambique, onde as relações inter-raciais eram muito mais complexas do que em Angola, pelo que li em Racismo em Português, de Joana Gorjão-Henriques, que fala de um apartheid já reconhecido, embora não oficial, nos anos de 1940 em Moçambique; mas cujo pai era também de classe operária, electricista, mas patrão.

Neste caderno de memórias - que, vim a saber após a leitura, é baseado em textos escritos num blog e que vieram posteriormente a ser compilados e publicados -, a autora merge a identificação da memória colonial com a figura do pai. A relação entre ela e o pai, muitíssimo central ao livro, é-me extremamente bizarra, dado que o terceiro capítulo do livro abre desta forma:

Foder. O meu pai gostava de foder. Eu nunca vi, mas via-se.

...O que confesso que toldou a minha leitura do restante livro de alguma forma, talvez porque o pai é uma figura muito presente no livro - o imaginário de homem, colono, branco, imagem do poder - e o complexo de Édipo tenebroso da autora também. Da mãe, diz-nos, só apreciava as mamas (que delícia haveria de ser ter autorização para lhe mexer, mamar, chupar por todo o lado), algo que também apreciava numa amiga mais velha, com quem tomava banhos de imersão, ocasião na qual lhe tocava com os pés nos genitais. Sobre um primo, diz:

Eu tinha 10 anos muito em fogo, amava-o em segredo, sonhava viver com ele intensas aventuras eróticas (...) o meu primo acordou o meu primeiro desejo, e, uns anos mais tarde, matou-se.

Sexualização infantil e complexos de Édipo (ou Electra? nem sei) aparte, devo concluir que esperava, das várias opiniões que leio do livro, mais uma denúncia do que o colonizador branco fazia em África, do que uma carta de amor incestuosa ao pai, que revela, frequente e repetitivamente, ter traído. Sabemos, no fim, que a traição foi não ter falado mal dos indígenas mal chegou à metrópole. Assim, pelo meio destes episódios, Isabela conta a sua infância do ponto de vista de filha do colonizador, que cresce num contexto de privilégio (do qual os pais de Isabela, bem como os outros brancos, se achavam merecedores), marcado pela intolerância, não sofrendo do racismo, dando a entender, porém, que na altura via o erro nestas relações de poder.

Moçambique é essa imagem parada da menina ao sol, com as tranças louras impecavelmente penteadas, perante a criança negra empoeirada, quase nua, esfomeada, num silêncio em que nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos lados opostos da justiça, do bem e do mal, da sobrevivência.

Será, Isabela? Será que aos doze anos, quando de lá saíste, pensavas mesmo nessas injustiças? Não sinto que o livro tenha tido muito sucesso ao querer demonstrar que Isabela era "not like the other colonialists" ou "not like the other whites", mas isso também pode ser porque metade - ou mais - do livro está pejada de memórias de sexualidade infantil que acrescentaram zero à narrativa e me trouxeram algum incómodo e asco.

Haverá várias formas de denunciar - para mim, Isabela Figueiredo não teve grande sucesso em nenhuma.

Destaca-se, pela positiva, a crueza da autora no tratamento dos assuntos do racismo, do estilo de vida dos brancos em Moçambique, no choque que sentiu ao regressar, sozinha, à "metrópole", passando da vida à qual o pai chamava de "remediados" (mas com claros luxos) a uma pobreza extrema com uma avó muito doente. Mais uma vez, nos capítulos de "retornada", Isabela menciona ser assediada no caminho para a escola, enquanto adolescente jovem, por trabalhadores de oficinas numa rua pela qual tinha obrigatoriamente de passar no trajecto - não compreendi a inclusão deste pedaço, mas talvez porque, em 2001-2006 passava por cerca de três oficinas no caminho para a minha escola, e esse assédio não me parece uma vivência tão única assim, muito menos relevante no contexto da obra.

O que me chocou mais, porém, foi perceber que a autora era mais nova que o meu pai. Talvez porque, como mencionei acima, o meu pai nunca teve qualquer memória afectuosa ou profunda relativamente aos seus tempos em Angola, por ter talvez de lá saído muito novo, fiquei chocada ao entender que Isabela era mais nova que ele, e terá saído de Moçambique (sozinha, é certo) com sensivelmente a mesma idade. Haverá, é claro, uma visão que pôde ser trabalhada já em adulta sobre aquilo que viveu em criança - tal como Anne Frank editou todos os seus diários quando ouviu na rádio que haveria interesse em publicar memórias de guerra um dia -, e em retrospectiva vemos sempre as coisas de outra forma, não é verdade? Mas não me atrai a forma como é escrito quase como se fosse a sua visão real dos eventos, de quando era criança e pré-adolescente. A memória é sempre toldada pelo tempo; porém, a verdade é que não lhes chamou diários de memórias coloniais, pelo que posso estar a ser injusta.

Não apreciei, também, o estilo de escrita do livro; faz totalmente sentido serem posts de blog compilados, porque se nota serem histórias soltas, sem fio narrativo que os una sem ser o facto de serem memórias de uma época. O estilo, achei muito repetitivo, na forma como vários dos capítulos começavam e terminavam da mesma forma. Também julgo que muitas vezes a autora procurava forçosamente arrancar algum tipo de reacção (possivelmente mais escatológica) do leitor e não fui capaz de corresponder. Acredito que se leia realmente melhor como blog (aos poucos, em dias separados) do que como livro (de seguida), porque se torna rapidamente exaustivo.

Odeio estar a criticar assim algo que são as memórias pessoais de alguém, mas a partir do momento em que se publica, estão abertas a escrutínio...?

Gostei muito mais das introduções de Paulina Chiziane e de José Gil, que talvez me tenham elevado muitíssimo as expectativas para o livro.

3/5 entendo a importância do livro em vários contextos, mas se fosse eu a editá-lo, sobraria talvez 1/3 do produto final

Podem comprar esta edição na wook.


Comentários

  1. Achei a opinião interessante. Só tenho lido críticas positivas do livro e confesso que estava com interesse em ler mas agora fiquei na dúvida.

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    1. Mas devo dizer que a minha opinião dentro do grupo de leitura do João - que ainda tinha bastantes pessoas - era a minoria. Talvez se impressionem menos com certas coisas do que eu (e o que me impressionou não foram as - poucas, na minha opinião - descrições do que era realmente o tratamento do colonizador para com o colonizado, que achei normais e previsíveis e até pouco violentas vs o tratamento da revolta do 7 de Setembro em Moçambique, mas a inclusão não só do complexo de Édipo feminino absurdo com direito a partes verdadeiramente nojentas), ou consigam relegar para segundo plano, ou não tivessem tanta noção quanto eu do que terá sido realmente a vida naqueles lugares, naquele tempo. Porque, sim - as pessoas falam muito do livro como tocando muito nesses lugares onde ninguém mais toca, de quem ninguém mais fala, mas senti que tocava muito pouco e ia com uma expectativa completamente diferente. Mas reconheço que, apesar de uma certa "falta de transparência" ao não explicitar que é 40 anos depois que questiona as coisas, ela efectivamente questiona. Acredito que muita gente, da idade dela também, fale com muito saudosismo e do "bom colonialismo" sem algum dia terem reflectido no assunto.

      Posto tudo isto - quero ler O Retorno, da Dulce :)

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    2. Também quero muito ler O retorno

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