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O Alienista

Tenho andado a redescobrir Machado de Assis.


Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

Esta novella é sobre Simão Bacamarte, "o alienista", o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas, que se debruçara sobre o estudo da loucura - e, mais do que isso, é uma obra sobre como não queremos que seja este indivíduo a decidir quem é doente mental e quem não. Clínico, científico e basicamente desprovido de sentimentos humanos (quem mais se casa com alguém por ser saudável e não-atraente, de modo a que seja uma escolha racional e que não o distraia do trabalho?!), Bacamarte dedica a sua vida à ciência, ao diagnóstico das obscuras desordens mentais dos cidadãos de Itaguaí, abrindo a "Casa Verde", o primeiro asilo do Brasil - um asilo com muitos quartos vazios, que Bacamarte quererá ocupar, em nome da evolução científica. Esta sua missão rapidamente toma contornos absurdos, havendo mais plot twists do que seria de esperar para tão poucas páginas.

Bacamarte, a quem o governo dá total poder de acção, explora a linha que separa as "especificidades" de cada pessoa da loucura, internando arbitrariamente aqueles que julga terem características psicológicas estudáveis. O que, no fundo, se resume em qualquer indivíduo que tivesse algo que escapasse ao absolutamente normal - demasiada honestidade, por exemplo, ou admirar a casa que se construiu após anos de trabalho. A certo ponto, 4/5 da população de Itaguaí está internada na Casa Verde.

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

E, portanto, onde fica a linha? Bacamarte decide revertê-la: são os absolutamente comuns, sem característica que os distinga, que têm, na verdade, falta de equilíbrio, falta de sanidade mental. E o que é, realmente, "normal"?

Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E claro que as pessoas de Itaguaí se revoltam contra este controlo por parte de Bacamarte, e questionam os métodos e critérios do médico.

Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

Mas, fique a ressalva - Bacamarte não era mau ou cruel, não fazia isto tomando vantagem da sua posição de médico de renome; apenas não sabia bem o que fazer, o que era realmente digno de estudo.

E claro que os locais tentam tomar a "Bastilha da razão humana", como fora a Casa Verde denominada por um poeta local. Mas não se revoltam directamente contra Bacamarte - tentar derrubar o governo local, que o apoia. E os vários poderes vão sucessivamente sendo derrubados e substituídos, primeiro por um governo totalitário, depois pela sua oposição que não tem ideias muito diferentes e, eventualmente, a ciência de Bacamarte vira-se contra ele.

A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

Nesta pequena comunidade brasileira, o progresso da ciência no dia-a-dia revela uma pequena história de terror, que só não o é totalmente porque resvala no absurdo. Há uma sátira dos líderes políticos, da sociedade, até da ideia de farmacêuticos que lucram à custa dos problemas da sociedade - ressalve-se que o maior apoiante do alienista é o boticário. Machado de Assis, assim, explora a comunidade científica, como esta interage com política e comunidade locais e satiriza a psicologia - e a leitura é tão actual hoje como em 1881.

E, mais que isso, levanta a questão: o que pode ser considerado "normal"?

4/5

Creio que ainda podem adquirir esta edição com a Visão; alternativamente, podem comprar outra edição aqui.


Comentários

  1. Parece bastante interessante o livro, o tipo de pessoas como Simão Bacamarte deixam-me sempre com receio mas não tanto como governos ou poderes que permitem tais acções

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    1. É muito interessante sim! E sim, há toda essa questão por trás: os governos, e como eles respondem (ou não) às revoltas locais quanto ao que se está a passar.

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  2. No clube de leitura "Conversas Livráticas" falaram neste livro e fiquei muito curiosa e com vontade de ler, até porque tem poucas páginas. Mas concluindo, há livros pequenos que valem mesmo a pena!

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    1. Edite, este vale sem dúvida a pena! E se ainda conseguires a edição da revista, não é nada caro :)

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  3. Também tenho esta edição e agora ainda estou com mais vontade de o ler :)

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