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A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore

Raúl Brandão é um autor que tenho vindo a explorar com alguma curiosidade.


Tendo já lido o fascinante El-Rei Junot, parti para esta obra, que me tinha sido descrita como aborrecida e, acima de tudo, irritante, pela frequente repetição de determinadas palavras (há uma opinião no Goodreads que foca precisamente nessa repetição intensa). Estando já alertada, procurei ler a obra sem grande preconceito, por já ter lido o autor, e por ser de dimensão algo diminuta.

O tamanho engana - o livro é denso.

Primeiro, talvez, algumas considerações sobre a história da publicação da obra (o que explica o título algo bizarro): foi publicada, pela primeira vez, em 1896, intitulada simplesmente "História d'um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício)", do qual constam a história do palhaço, contada na terceira pessoa, e um diário, do próprio palhaço (cujo nome é, portanto, K. Maurício), onde lemos as reflexões do mesmo sobre as ocorrências da primeira parte.

Trinta anos volvidos, foi republicada com o título que se mantém até hoje, A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, incluindo, agora, uma terceira parte, que, não tendo ligação directa com o anterior, consiste em contos e textos, supostamente encontrados no espólio de K. Maurício, e que devem ajudar a definir a personalidade do personagem central.

D. Felicidade, o Doido, o Anarquista, o Pita, o Palhaço (K. Maurício). O Palhaço adora sonhar. Como as restantes personagens, trabalha num circo; dado o seu papel, tem como objectivo fazer as pessoas rir, e exprime a sua vida e os seus sentimentos em cada gesto e actuação. K. Maurício não sabe o que é amar, pois apenas o experimentou em sonhos. Compara-se a uma árvore.

É sempre a mesma coisa há meses, a mesma ansiedade sem causa, que não sei de onde provém. Parece que espero uma desgraça desconhecida, uma catástrofe que ignoro - e que nunca chegará. Que nunca chegará, ouves bem? ... Vivo alheado, o cérebro espalhado por todas as coisas: apenas esta inquietação me domina e me enche. Se saio do sonho, não sei viver. Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto: a porta que se fecha é para mim uma angústia. Compreendes isto? Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim e me estatelasse no solo, do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago, o aflitivo do nada...

Um dia, Camélia desperta a atenção de K. Maurício, e desperta-lhe o amor. Camélia ria-se sempre. K. Maurício pediu auxílio a Pita, que lhe diz que se declare a Camélia. K. Maurício começa a demonstrar, nas suas actuações, o amor que sente por Camélia, mas esta ri-se - da sua actuação, das suas lágrimas, dos seus sentimentos.

Um palhaço não tem direito ao amor, embora seja belo por dentro e a alma só lhe abrase em amor? Quem passou a vida a sonhar, se chega ao momento em que a vida não se compreende sem amor, não tem direito de ser amado? Amar ou morrer? Amar ou morrer?

E não importa que Camélia lhe responda "Amar!".

O Palhaço que preferia o seu mundo do sonho, sem a crueldade da realidade, onde pode ser quem quiser, viver, ter desejos, fantasias e realizá-los. Mas não se consegue desligar da ilusão - a emoção fica acima do racional, o que é sentido na linguagem utilizada (uma das palavras frequentemente repetidas - quimera). 

N'O Mistério da Árvore, apresenta-se um conto sobre um reino com apenas uma árvore, que servia para enforcar quem demonstrasse felicidade. 

Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca. 

No entanto, quando um casal ousa amar-se, num reino em que toda a felicidade era assolada, e se deita sob a sua sombra, um galho enche-se de flores. Como K. Maurício, pessimista face à realidade cruel, quando conhecera Camélia.

3,5/5

Podem comprar esta edição na wook ou na Bertrand

Comentários

  1. Nunca li nada de Raul Brandão, mas tenho cá este livro, numa edição antiquíssima mas bem estimada, por isso, hei-de pegar-lhe em breve. O Doido, o Anarquista e o Palhaço parece-me um trio promissor!
    Paula

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    Respostas
    1. Tem-me sido interessante esta experiência - não acho os livros dele nada fáceis, e são mais densos do que parecem à primeira vista. Curiosa com essa edição antiquíssima :)

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  2. Antiquíssima como eu, de 1972. Ah ah!
    Livros RTP. Está tudo ligado! ;-)
    Paula

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